O populismo em forma de oráculo
Há um populismo cultural triunfante que não é identificado como tal e tem todos os meios para se expandir sem resistência.
Há o populismo político, um conceito que hoje nos é servido como uma papa homogeneizada; e há o populismo cultural, de que pouco se fala e é quase imperceptível porque já faz parte do ambiente e até é produzido e estimulado pelos mesmos que, mal viram um pouco a cabeça (uns para a esquerda, outros para a direita), deparam com o monstro do populismo político. Às vezes a figura do populismo não passa despercebida porque atinge proporções escandalosas. É o caso das imposturas “filosóficas” de um charlatão chamado Michel Onfray, do qual foi publicada uma longa entrevista no último Ípsilon, acompanhada por um artigo, da autoria do entrevistador (Jan Le Bris De Kern), intitulado Jesus Cristo nunca existiu. É um título suculento, que resume a grande revelação do livro de Onfray, publicado há alguns meses em França, com o título Décadence. De Jésus à Ben Laden, vie et mort de l’Occident. Ao pé disto, O Declínio do Ocidente, de Spengler, era coisa sóbria.
Em que consiste o populismo cultural — ou, mais precisamente, o populismo em filosofia — do qual Onfray é um exemplo superlativo? Consiste numa banalização e degradação do pensamento, numa forma de discurso animada por propensões demagógicas que visam atrair o maior número de pessoas. É um apelo ao mais banal senso comum, mesmo quando parece querer destituí-lo. De filosófico, o discurso de Onfray não tem nada: pertence a um género oracular, também usado nas várias modalidades de charlatanismo. Não se trata aqui da popularização da filosofia na época da democracia de massa. Não confundamos popularização com o seu duplo obsceno, o populismo, que é onde se situa o famosíssimo e muito prolífico “filósofo” francês. A primeira regra do populista consiste em prometer a verdade a baixo preço, em encontrar uma verdade ignorada por todos: seja ela que Jesus não existiu ou que Freud e a psicanálise são uma grande impostura. Denunciar as grandes “mentiras” da história da filosofia é o modesto programa do autor de Décadence. Cada livro seu é um panfleto: o populismo cultural é panfletário. O seu método, diz ele, consiste em ler toda a obra de um autor e tudo o que se escreveu sobre ele. Uma descarada mentira, já que uma vida inteira não dá para ler tudo o que se escreveu sobre Freud. E mesmo que desse, pouco tempo restaria para entrar nos longos e complexos meandros histórico-biográficos da figura de Jesus, ainda por cima com a ambição de percorrer dois mil anos para chegar a Bin Laden e atingir as alturas de onde observa o Ocidente a declinar. E, como todo o populista, este também é anti-sistema. Não fala a mesma linguagem técnica dos filósofos profissionais para evitar o jargão técnico. Jamais o apanhamos a falar do esquematismo transcendental de Kant. O seu discurso “filosófico” é para ser compreendido pelos não iniciados, pelos afásicos e surdos para as coisas da filosofia, mas despertos para a tagarelice mediática. O segredo está precisamente aqui: o “filósofo” que encontra para cada livro uma trouvaille, daquelas que são feitas para partilhar no Facebook e para alimentar a cultura jornalística do clique, anuncia-a sempre com grande alvoroço em todos os media. Ele, o que vive na província, que criou a sua própria “universidade popular”, que não quer aproximar-se dos círculos filosóficos parisienses e seus derivados, passa a vida a dar entrevistas, a promover os seus livros na rádio e na televisão parisienses. Evocando-o como exemplo grandioso do populismo cultural, não podemos esquecer que não está sozinho e precisa da solidariedade e da complementaridade dos dispositivos mediáticos.