Finanças solidárias na encruzilhada

As mutualidades têm de saber diversificar os seus serviços financeiros (e não financeiros) desenvolvendo uma oferta solidária responsável mais atrativa.

As instituições da economia social vocacionadas para o financiamento solidário à economia estão no centro de muitos debates. O tema é tanto mais pertinente quanto o panorama atual do sistema financeiro nacional é desolador, tendo os maiores bancos e seguradoras sucessivamente capitulado, sem honra nem glória, perante a ofensiva de fundos globais e interesses capitalistas apátridas.

Mutualidades, caixas económicas, cooperativas de crédito mútuo e outras entidades afins corporizam historicamente um conceito e práticas de finança baseada na solidariedade responsável, com ação relevantíssima nos dois últimos séculos. Desenvolveram, em especial, a partilha de riscos coletivos em saúde e segurança social, fomentaram a poupança dos particulares e permitiram o acesso ao crédito a quem não atingia os patamares de solvabilidade e garantias reais exigidos por outros agentes financeiros. Foram, desta forma, ferramentas decisivas de cidadania social, contribuindo para o êxito das lutas políticas pela liberdade e igualdade dos cidadãos de todo o mundo.

Os sobreviventes nacionais dessa prestigiosa tradição de finanças solidárias estão hoje numa encruzilhada, confrontados com escolhas decisivas para o seu futuro, pois necessitam de dimensão para continuarem a ser atores viáveis nos mercados sem descaracterizarem o seu papel de alavanca d cidadania.

Para quê finanças solidárias?

As mutualidades propõem aos associados certas modalidades de benefícios de segurança social e saúde, sob forma pecuniária e não pecuniária. Nas modalidades financeiras, os benefícios são subscritos voluntariamente e materializam uma partilha associativa de riscos tendo por contrapartida o pagamento de quotas, de forma semelhante a prémios de seguro e a aplicações em planos de poupança reforma, geralmente com vantagem financeira face ao sector privado por não exigirem remuneração dos capitais investidos.

Quanto às caixas económicas, o enquadramento jurídico atual distingue duas modalidades: as caixas económicas “anexas”, que preservam a natureza fundacional original, e as caixas económicas “bancárias”, com ativos de mais de cinquenta milhões de euros, que perderam tal natureza. Estas últimas são constituídas sob a forma de sociedade anónima e atuam como bancos universais, revestindo-se de natureza instrumental para a entidade titular (obrigatoriamente uma instituição da economia social, embora possa haver participação minoritária de terceiros).

Apesar de poder parecer que as caixas de crédito agrícola, pertencendo também elas à economia social, estão conceptualmente muito próximas das caixas económicas, convém assinalar que há diferenças entre umas e outras. Trata-se de cooperativas de crédito mútuo de âmbito local, com enquadramento jurídico próprio, em que o capital societário é detido pelos cooperantes, ainda que funcionem atualmente como sistema integrado, de âmbito nacional, com uma caixa central à cabeça de um grupo de 68 caixas locais federadas detentoras do capital daquela (além de outras participadas instrumentais que consolidam no grupo).

Desafios

A profunda transformação do sistema financeiro global e nacional que estamos vivendo está a limitar significativamente a capacidade das instituições da economia social, de menor dimensão face aos players privados, de continuar a desenvolver as suas práticas de finança solidária. A tendência à concentração acabará por se impor.

Com a revisão do código das associações mutualistas, os benefícios financeiros das mutualidades vão passar a ter um enquadramento mais próximo da atividade das seguradoras e dos fundos de pensões, com exigências análogas de solvência, sujeitas à supervisão da mesma autoridade reguladora e participando num fundo de garantia dos benefícios atribuíveis.

Por seu lado, as instituições de crédito da economia social estão já sujeitas às exigências de capital e de liquidez comuns a todos os operadores bancários, o que está a obrigar a intensa capitalização. Crescer é preciso, o que implica concentração.

Há dificuldades em fazer este caminho e uma delas é o bem conhecido “espírito de quinta”, que abunda também na economia social. Razão suplementar por que o Estado não pôde demitir-se de intervir para garantir o bom sucesso dos processos de recapitalização, seja encorajando a convergência financeira entre instituições da economia social, seja implicando entidades do próprio sector público no esforço financeiro adicional necessário.

Um ponto importante é que as instituições de crédito da economia social se devem afirmar como operadores que vão mais além da criação de valor acionista, continuando a comungar dos valores da solidariedade responsável.

As mutualidades têm de saber diversificar os seus serviços financeiros (e não financeiros) desenvolvendo uma oferta solidária responsável mais atrativa, adequando melhor as suas propostas de valor às necessidades dos públicos-alvo e reforçando o caráter ético e socialmente responsável das suas práticas.

As instituições de crédito da economia social, atuando embora segundo as mesmas regras de qualquer outra, devem obedecer a importantes qualificações estratégicas e operacionais no desenvolvimento do seu negócio, focando-se determinadamente na sustentabilidade social e ambiental.

No imediato, um importante desafio é o de continuar a conceder soluções de proteção, poupança e crédito aos sectores da sociedade que os mercados mais tendem a excluir, sem que isso acentue os riscos para a continuidade da operação. Por isso, a escala da operação e a elevada capitalização são críticos no contexto atual de reduzidas margens financeiras.

 

CIDADANIA SOCIAL - Associação para a Intervenção e Reflexão de Políticas Sociais - www.cidadaniasocial.pt

O autor escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico

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