Para falar de Flores (e de todas as outras curtas do IndieLisboa)
Encerrado o concurso nacional de curtas do festival, reconhece-se uma das melhores selecções dos últimos anos e um raio de esperança para o futuro do formato entre nós.
Vamos partir do pressuposto de que a competição nacional de curtas-metragens do IndieLisboa de 2017 pode ser lida como retrato “à la minuta” do estado actual do formato entre nós. Nesse caso, a primeira coisa que salta à vista desse retrato é simples e evidente: a grande maioria das curtas mostradas este ano no Indie tem entre 20 e 30 minutos de duração, como se fossem ensaios para as longas que (ainda) não se conseguiram fazer.
No entanto, a questão da duração (que é fatal a alguns dos filmes, como veremos mais à frente) não passa de um fait divers face ao que é realmente importante: pela primeira vez em vários anos, uma programação de curtas made in Portugal revela uma tendência de recuperação. As últimas edições do Curtas Vila do Conde e a “divisão” da produção pelo Indie e pelo Curtas davam a entender que, apesar do “fogacho” pontual dos últimos anos (como João Salaviza), o formato estava a perder gás, sem que surgisse uma sucessão para a “geração Curtas” dos anos 1990.
Não queremos com isto dizer que de repente surgiu do nada uma nova geração; apenas que, pelo meio das convulsões que rodeiam as produções e os financiamentos, o concurso 2017 do Indie apresenta a produção mais consistente, mais criativa e mais interessante dos últimos anos. Nem é preciso ir buscar o Urso de Ouro de Berlim, Cidade Pequena, de Diogo Costa Amarante (que já vinha do Curtas 2016 e acaba por ser dos títulos menos interessantes desta escolha), ou Ubi Sunt, a mais recente exploração oblíqua das formas documentais de Salomé Lamas, aqui em intrigante cruzamento semificcionado, semiabstracto. O que é preciso é ver como as curtas a concurso no Indie se colocam, quase todas, de modos criativamente justos na fronteira entre o documentário e a ficção; ou procuram encontrar outras maneiras de trabalhar a narrativa ou contar uma história; ou parecem dar um novo fôlego a cineastas que já conhecíamos.
Jorge Jácome, por exemplo, depois de alguns trabalhos menos inspirados ou conseguidos, constrói com Flores uma suave e melancólica distopia insular imaginando uns Açores “invadidos” por uma praga de hortênsias, na qual instala três episódios sobre resistir à mudança ou embarcar nela. É um tema explorado também pelo artista visual Pedro Neves Marques em Semente Exterminadora, que parte de questões ecológicas (exploração de recursos fósseis, culturas transgénicas) para criar uma espécie de apocalipse anunciado em câmara hiperlenta, com algo de À Beira do Fim no Brasil, numa curiosa ligação com o experimentalismo assumido de Um Campo de Aviação, de Joana Pimenta, cruzamento de imagens rodadas em Cabo Verde e Brasília para contrapor o poder da natureza à invenção humana, que teve estreia em Locarno 2016.
José Filipe Costa, autor de Linha Vermelha, propõe com O Caso J uma poderosa e peculiar docuficção, entre o distanciamento teatral brechtiano e dispositivos formais entre Tréfaut e Von Trier, inspirada em casos verídicos de violência policial no Brasil; em Antão, o Invisível, a dupla Maya Kosa/Sérgio da Costa (Rio Corgo) pega nas Tentações de Antão, de Bosch, para explorar a maneira como a arte transcende a simples dimensão dos sentidos, e a sua interpretação é, literalmente, possível mesmo por quem não a conhece. E Miguel Moraes Cabral encena com humor e emoção, em O Homem de Trás-os-Montes, uma metaficção sobre uma equipa documental em rodagem que se torna uma sensível, comovente carta de amor à região transmontana.
Nem tudo nestas 18 curtas está ao mesmo nível: O Turno da Noite, de Hugo Pedro, por exemplo, é um gague curioso que resultaria melhor em dez minutos no que nos 30 pelos quais se estica desnecessariamente. A duração é um problema que afecta igualmente a “desfocagem” de Tudo o Que Imagino, de Leonor Noivo, olhar sobre o quotidiano de um grupo de jovens suburbanos cujos 32 minutos têm muito de “esboço” de longa, algo “perdido” na observação do quotidiano (e são os momentos puramente observacionais que verdadeiramente ganham o filme). Essa dimensão observacional subjaz também a Miragem Meus Putos, de Diogo Baldaia, cujo inspirado formalismo plástico não é salvo pela dispersão visual, e a Nyo Vweta Nafta, de Ico Costa.
Este último, envolvente olhar sobre o dia-a-dia de um grupo de amigos do Moçambique que chega ao Indie com o prémio máximo de curtas do Cinéma du Réel, precisaria de um pouco mais de personalidade para ser um dos grandes filmes do concurso — tudo nele remete demasiado para outros cineastas e outros filmes. Mas é também para isso que servem as curtas — para ensaiar e experimentar. E a simples existência destes 18 filmes é suficiente para fazer esperar que o laboratório das curtas esteja a entrar outra vez em velocidade de cruzeiro, depois de varrer as teias de aranha que parecem ter-se instalado nestes últimos anos.