A atitude do Papa Francisco “gerará e edificará uma outra Igreja”
José Frazão, superior provincial da Companhia de Jesus em Portugal, considera que a “maior força” deste Papa reside na sua capacidade de obrigar a Igreja a olhar de frente as novas realidades, mesmo as mais hostis.
O superior provincial da Companhia de Jesus em Portugal, o padre José Frazão, considera que o pontificado do Papa Francisco está a “desinstalar” a Igreja Católica e a obrigá-la a encarar de frente os desafios colocados pelos novos quotidianos dos crentes. Sim, a Igreja, que precisa de se reinventar na sua base paroquial, sob o risco de ficar a falar sozinha, há-de ter mulheres diaconisas e padres casados mas não durante o actual pontificado, porque estas “mudanças estruturais” exigem tempos longos. E não, Frazão não considera que a vinda do Papa a Fátima traduza uma identificação acrítica com o fenómeno religioso das Aparições.
À partida diríamos que este Papa, ao contrário de João Paulo II, não se identifica muito com o tipo de espiritualidade vivida no Santuário de Fátima. Não concorda?
O Papa Francisco tem um grande afecto pela religiosidade popular e, portanto, pela compreensão da Igreja como povo. Creio que estará mais longe de uma compreensão mais intelectual ou elitista do cristianismo e, nesse sentido, tem uma afinidade própria, muito particular e muito genuína com todas as expressões religiosas mais elementares. Apesar de o santuário ser hoje uma confluência de muitas procuras, de múltiplas expressões, sinto que o Papa Francisco tem uma ligação muito genuína àquilo que se encontra e que se exprime num santuário como Fátima.
É um sítio onde ele pode encontrar as periferias de que tanto gosta?
Sem dúvida. Porque as periferias são lugares, pessoas, realidades; são físicas, geográficas e pessoais. E seguramente que em Fátima se encontra tudo, porque o caminho que leva a Fátima são muitos caminhos. E hoje percebemos que, mesmo dentro da Igreja, são caminhos muito diferentes. Há ali uma confluência de uma vivência da fé mais regular com vivências muito mais extraordinárias, itinerantes, intermitentes, duvidosas.
Já são conhecidas as primeiras palavras que o Papa vai proferir à chegada ao santuário e ele identifica-se a si próprio como o homem vestido de branco. Ora, estávamos convencidos de que esse homem já cá tinha vindo e era João Paulo II.
Tendo a missão de bispo de Roma, como ele gosta de se chamar, e, nesse sentido, de pastor da Igreja universal, o Papa Francisco vem como peregrino, como vieram os últimos. E, de facto, a dimensão de peregrinação desta visita é particularmente notória, porque não é uma visita de Estado. Nesse sentido, creio que o Papa assumirá a tradição anterior e a maneira como ela foi interpretada, sobretudo pelo Papa João Paulo II e por intermédio do cardeal Ratzinger, sublinhando o elemento nuclear de Fátima que é o apelo à paz, que não é apenas retórico mas uma necessidade efectiva. Porque, de facto, como o Papa diz, estamos a viver uma terceira guerra mundial, um conjunto de conflitos muito significativos em muitas partes do mundo, com extremar de posições de agressividade entre políticos, mesmo nas democracias ocidentais. Portanto, este apelo do homem vestido branco que vem fazer um apelo à paz faz todo o sentido.
Esta vinda não pode ser entendida como um aval ao lado mais mundano e político de Fátima? Há dias, o delegado pontifício da Cultura no Vaticano, D. Carlos Azevedo, dizia que está na hora de se falar de Fátima e do que se passou há 100 anos com uma linguagem mais exacta, porque é óbvio que “Maria não veio do céu por aí abaixo”. Não se esperava deste Papa uma demarcação de todo este misticismo em torno das Aparições?
Creio que o Papa tem uma espiritualidade e uma piedade muito genuínas. Não tem uma compreensão teórica, intelectualizada, do fenómeno cristão. Quanto a fenómenos como Fátima, o tempo encarrega-se de depurar aquilo que eles têm de necessidade de depuração, também teológica. O contributo de D. Carlos Azevedo, como o de outros, que faz uma leitura mais teológica do próprio fenómeno, ajudará a depurá-lo. Creio que o Papa se insere num movimento muito genuíno de expressão da fé, nos seus estados mais populares. Mas também não podemos dizer com esta oração que foi anunciada que exista uma identificação com aquilo que nestes fenómenos religiosos precisaria de depuração.
No início da sua missão como provincial dos jesuítas estava também a começar o pontificado deste Papa Francisco. E ele herdou uma igreja que parecia estar a desmoronar-se na altura, porque havia uma série de questões do ponto de vista doutrinal e até moral, com a célebre questão do vatileaks. Quatro anos depois, como é que olha para este pontificado?
Creio que a força maior [deste Papa] é o apelo que ele faz, e que é extremamente difícil de seguir, para que a Igreja possa aprender a compreender-se, não a partir do centro mas das periferias. A questão das periferias com o Papa Francisco não é uma questão romântica, do tipo ‘agora vamos para os bairros de lata, agora vamos para os bairros sociais nas periferias das cidades’… É muito mais do que isso: é um apelo sério a que a Igreja se compreenda a partir do que está fora, do que é excluído, do que não tem poder. E isso gerará e edificará uma outra Igreja.
E é também à procura das periferias que ele levanta as questões ditas fracturantes do acesso ao sacerdócio por parte de homens casados ou mulheres, do acolhimento dos homossexuais?
O Papa Francisco tem uma relação muito tangível, concreta, com a realidade. E a realização do Evangelho terá que ter em conta a realidade que existe. Quando beija aquela pessoa desfigurada no rosto, o Papa está a estabelecer uma ponte com o excluído, com a periferia, a dizer: “Não tenham medo da realidade”. E, portanto, esse não ter medo da realidade, mesmo quando ela é agressiva e hostil à Igreja, é já um modo de entrar no contacto fecundo com essa mesma realidade.
O Papa conseguirá vencer a resistência da hierarquia da Igreja para fazer vingar essa forma de estar menos hostil por parte da Igreja às novas formas de estar em família?
Creio que ele irá tendo força, porque acredito profundamente que o Papa não é um líder mundano, isto é, que se sente movido pelo Espírito Santo. E o Papa Francisco é muito livre e, portanto, se ele sentir que é à direita vai à direita; se sentir que é à esquerda é à esquerda.
Mas tem tido que arrostar com um conjunto de resistências fortes dentro da Igreja Católica.
Sim, mas os exercícios espirituais de Santo Inácio têm uma consciência muito firme que uma opção pelo Espírito Santo implica resistências, na linguagem de Santo Inácio, de um mau espírito. Podemos dizer, usando outra expressão, que o apelo ao bem desperta resistências que vêm do medo, da insegurança. E, portanto, o Papa Francisco não terá nenhuma ignorância em relação às resistências que encontrará.
Daí uma certa ambiguidade naquela exortação pós-sinodal relativamente ao acolhimento dos divorciados e recasados?
Não me espantam as dificuldades e as diferenças de entendimento em matérias tão sensíveis, ainda mais quando a Igreja não trabalha em tempos curtos. É evidente que hoje tudo acontece rapidamente, mas a mudança de elementos estruturais exige maturação e o tempo ajudará a depurar aquilo que não estará de acordo com o Evangelho. E, portanto, a aceitação de que os tempos são longos nestas matérias parece-me importante. Ao mesmo tempo, não podemos ficar inertes por ter receio disto ou daquilo se acharmos que o espírito nos impele nesta direcção. Creio que é a essa a força do Papa Francisco.
Neste instante não se percebe bem se a Igreja permite o acesso aos sacramentos a casais recasados ou não. Isto é uma parte do caminho ou não foi dado o passo completo que se pretendia dar por causa das resistências?
As questões são complexas e geram diferentes entendimentos dentro da própria Igreja. O sínodo exprimiu isso. E o Papa quis que as divergências fossem conhecidas. Porque as divergências não são um atentado à unidade, isto é, o discernimento é a avaliação de moções, de movimentos e de entendimentos diferentes. Agora não me parece que haja ambiguidade no texto. O que o Papa faz é devolver em grande parte às comunidades locais, e dando um papel muito importante aos bispos, a possibilidade de fazerem o caminho. O documento final lança um desafio muito grande à Igreja para que esta percorra o caminho. E nós sabemos que, quando se percorre o caminho, há bolhas, há cansaços inesperados, há forças também inesperadas. Mas é este caminho que irá ajudar a Igreja - talvez não seja num ano nem em dois nem em dez anos – a recentrar-se no essencial e a depurar aquilo que não é essencial.
Crê que durante este pontificado será possível termos na Igreja Católica mulheres ou homens casados ordenados?
Não me parece que neste pontificado possamos ter essa expectativa, porque são temas que pedirão muito mais tempo à Igreja para os amadurecer.
O Papa criou um grupo responsável por estudar a possibilidade de as mulheres serem diaconisas.
Sim, essa comissão tem pessoas de várias proveniências que gerarão as suas conclusões e isso será mais uma etapa - seguramente não a última - deste caminho que não começou agora.
O Papa disse, a certa altura, que preferia uma Igreja acidentada e que de vez em quando tropeçasse do que uma Igreja sossegada. Crê que é isso que ele faz quando não evita estas questões e as aborda criando comissões para estudar de que forma é que este tipo de problemas pode ter resposta?
Creio que é isso. Porque, caso contrário, fazemos de conta que a realidade não existe e seguimos mais ou menos impávidos e serenos pensando que tudo está bem. O Papa, mais uma vez, tendo uma grande consciência da realidade interna e externa à Igreja, sente que há que lidar com as questões, mesmo quando elas são complexas. Mas isto sem precipitação e sem a pressa de as resolver imediatamente quando elas não são resolúveis numa declaração. Exigem o tempo necessário a esse discernimento. Aprecio esta força do Papa Francisco porque desinstala a Igreja e impede-a de se render a uma linguagem que funciona sempre, a uma piedade que funciona sempre, mas que funciona muito internamente. E a Igreja não existe para se auto-celebrar. Existe para anunciar o Evangelho no tempo que lhe é dado viver. Creio que o Papa Francisco faz um apelo no sentido de dizer: lidemos com a realidade, seja ela como for, e não a excluamos imediatamente, não criemos barreiras de protecção - que muitas vezes são barreiras de alheamento e de fazer de conta que não existe. Nesse sentido, é melhor uma Igreja que se exponha e pague algum risco do que uma Igreja que se proteja mas que não cumpre a sua missão; isto é, ser fermento na massa, ser sal na sopa. É evidente que expor-se à massa ou expor-se à sopa significa entrar num mundo complexo e cada vez mais plural onde há os seus riscos. Acho isso extraordinário, porque foi isso que Jesus também fez.