O que se segue à "uberização" da indústria das notícias?

Temos um sistema que nem Adam Smith, nem Karl Marx – nem sequer Travis Kalanick – podem compreender por nós.

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Reuters/DAMIR SAGOLJ

Tanto a empresa Uber como o conceito Uber são assuntos interessantes para quem trabalha no negócio de encomendar e escrever artigos. A empresa que está a mudar o comércio e os transportes parece acabar constantemente em protestos nas ruas e nos tribunais. Entretanto, o seu fundador e CEO, Travis Kalanick, tornou-se o vilão perfeito de Silicon Valley, incluindo (com uma dose de ironia) ser apanhado a agir como um idiota num vídeo captado por uma dashcam depois de chamar um Uber. Realmente, é um tema de conversa interessante.

Mas o que importa muito mais do que o destino de Kalanik, ou mesmo da empresa, é o conceito – uma mudança monumental na relação entre os humanos, a tecnologia e o trabalho, a que a Uber emprestou o nome. Acolhido por alguns como um estímulo à inovação e o início do fim do corporativismo estabelecido, atacado por outros como uma servidão dos tempos modernos, a “uberização” é amplamente considerada uma autêntica nova revolução industrial – ou, pelo menos, um péssimo imprevisto para Adam Smith e Karl Marx. Ainda mais tema de conversa para repórteres e indignados.

Mas e a indústria das notícias? Como é que estamos a gerir esta mudança na forma como o nosso trabalho é organizado? Ao mesmo tempo que tentam utilizar novas tecnologias para compensar as receitas decrescentes, será que as empresas de media deviam aprender algo com a abordagem da Uber? E os jornalistas, incluindo os que foram despedidos e os que nunca entraram no mercado? Sim, também há uma ironia que nós temos de ponderar: o próximo artigo que ler sobre as vantagens ou os males da "uberização" pode muito bem ter origem no equivalente jornalístico a um motorista da Uber. (Claro que isto só pode ser superado pelos artigos sobre a inteligência artificial escritos por robôs.)

Quando lançámos a Worldcrunch, em 2011, a empresa Uber começava a aparecer no meu feed do Twitter, mas eu ainda não tinha percebido qual era o seu conceito. Na altura, para quem andava à procura de novas formas de fazer a cobertura jornalística do mundo, havia duas inovações muito promovidas que iriam mudar tudo: as content farms e o crowdsourcing. Lembra-se? O primeiro era a produção em massa, vinda de baixo, de artigos sobre “como fazer X” e publicações de clickbait que enganavam a optimização para motores de pesquisa, feitos por jornalistas contratados mal pagos. O segundo era uma fórmula, supostamente mais nobre, onde os próprios leitores iriam fornecer alguma da mão-de-obra não paga que poderia acabar por tornar obsoletos os repórteres e os editores. As content farms foram rapidamente minadas quando o Google se apercebeu do esquema e alterou os seus algoritmos de pesquisa. Por outro lado, a ideia da multidão que forneceria os profissionais estava destinada a ficar aquém das expectativas, apesar de ter estado na vanguarda de uma tendência mais alargada cujo nome todos conhecemos: a “economia de partilha”, o conceito mais genialmente desonesto de todos.

Através da Uber, da Aribnb e de outras empresas que foram inicialmente apresentadas como plataformas de “partilha”, os fundadores sabiam o que estavam a fazer, e não demorou muito para todos nos lembrarmos do velho provérbio sobre não haver almoços grátis. Alguém, algures, de alguma maneira, tem de pagar – e outra pessoa tem ser paga – se quiser garantir que o trabalho é feito.

Isto traz-nos ao presente – quer lhe chamemos "uberização", Mechanical Turk (um mercado de trabalho online) ou (para quem quiser acreditar que vive uma vida de rock ’n roll) a economia gig. Os elementos técnicos das content farms e do crowdsourcing já estão amplamente disseminados na indústria das notícias. O Washington Post construiu uma plataforma Talent Network cheia de estilo para gerir os seus colaboradores, enquanto empresas independentes como a Medium e o Paydesk forneceram vias fáceis para os indivíduos divulgarem o seu trabalho e encontrarem trabalhos pagos na Internet.

De facto, parece que os que trabalham no negócio de encomendar e escrever artigos sempre tiveram um nome ideal para isto: freelancing. Neste caso, a componente “free” significa livre, mais do que grátis, mas essa liberdade também pode ser desonesta. Ainda assim, o facto de esta palavra estar tão associada à indústria editorial é significativo.

Quando a Worldcrunch foi lançada, no meio da histeria do crowdsourcing, tomámos a decisão consciente de não procurar trabalho não pago nem de produzir cópias de má qualidade. Esta escolha não foi uma afirmação moral, mas sim uma previsão de que o único tipo de trabalho que pretendíamos fazer seria produzido de forma mais eficiente com um grupo restrito de freelancers modestamente (mas sempre) pagos. Para manter o nível de qualidade exigido que garantíamos aos nossos leitores e parceiros, não tínhamos recursos para investir nos mecanismos humanos e técnicos que são necessários para filtrar tudo o que entrava.

Ainda assim, sempre suspeitámos que, de facto, estávamos a desaproveitar a “multidão”. Os nossos leitores – particularmente no nosso modelo, que inclui publicar histórias em diferentes línguas –, podiam ajudar-nos em vários aspectos da “caça e recolha” do nosso jornalismo. Com o tempo, à medida que o nosso negócio começou a mudar, também percebemos que podíamos ligar a nossa gama de tradutores a peritos que escreviam em línguas diferentes em todo o mundo, sobre temas que interessavam aos clientes da nossa actividade crescente, que consistia em fornecer conteúdos a marcas e organizações. Conseguíamos encontrar mais profissionais (alguns dos quais já tinham empregos) em todas as áreas, ao alargar o alcance da nossa rede.

Isto não ia ser fácil – e sabíamos que tínhamos de criar alguma coisa para conseguir atraí-los. Graças a uma ajuda da Google aqui em França (um prelúdio do seu fundo Digital News Initiative, para apoiar a digitalização da imprensa), conseguimos criar uma plataforma onde podíamos gerir os nossos novos clientes e onde todos aqueles que estivessem interessados em contribuir podiam inscrever-se de forma espontânea. Chamámos-lhe Worldcrunch iQ.

Apesar de termos precisado de um bom conjunto de ferramentas digitais para que funcionasse, isto é um desafio para o desenvolvimento do negócio – e sim, para um mercado de trabalho em evolução –, mais do que uma questão meramente técnica. Como é que iriamos usar a plataforma para comunicar com jornalistas, tradutores e peritos? Como é que iríamos encontrar pessoas para corresponder às necessidades dos nossos clientes pagantes e do nosso próprio website?

A parte mais complicada vai ser equilibrar a forma como comunicamos com potenciais perfis muito diferentes: quem está apenas à procura de trabalho pago, quem procura visibilidade profissional ou a promoção de uma agenda política e mesmo quem só quer juntar-se à dita “conversa” vinda dos muitos locais, assuntos e línguas que os nossos leitores conhecem. O desafio – como suspeitávamos quando lançámos o projecto – está em fazer corresponder e filtrar as nossas necessidades face aos seus QIs e às suas expectativas. Temos um sistema que nem Adam Smith, nem Karl Marx – nem sequer Travis Kalanick – podem compreender por nós.

Jeff Israely, um ex-correspondente da revista Time na Europa, é co-fundador de uma empresa de notícias chamada Worldcrunch, sedeada em Paris. Nos últimos sete anos, ele tem descrito e comentado o processo de startup no Nieman Lab. Leia os seus artigos anteriores aqui.

Tradução Rita Monteiro

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