A Gaiola Dourada e a ratoeira nacionalista
Marine Le Pen e a emigração portuguesa para França.
Um pouco por toda a Europa há no ar um cheiro a podre que faz com que muitos já não queiram viver aqui. O exit é hoje um sufixo com muitos utilizadores. Este cheiro tem origem numa estratégia que vem de longe, assente na defesa do indefensável, numa emergente política nacionalista e xenófoba, no crescer das desigualdades entre Estados, mas, sobretudo, entre indivíduos e, talvez o mais grave, no fim de uma qualquer ideia de coesão social europeia. A globalização na Europa tem um rosto cada vez mais económico-financeiro. Já não há pessoas, apenas números e dados numa qualquer folha de cálculo a informar políticas públicas cada vez menos humanistas. E burocracias, muitas burocracias que enfermam o poder europeu e infernizam o cidadão comum toldando a sua visão sobre a Europa.
O cosmopolitismo europeu que permitiu à Europa ser líder ao longo de muitos séculos deu lugar a um nacionalismo antagónico entre os vários Estados-membros, divididos em muitas Europas (a do Euro; a de Shenghen; a de Visegrad; a do Sul; a do Norte; a das velocidades várias; a velha ou a nova; a dos migrantes versus a “nossa”). As gerações mais jovens, mais tecnológicas, mas menos cúmplices na construção de uma cultura comum, não se revêem nas propostas de um futuro adiado no emprego, na proteção social, nas famílias que não podem construir, nas formações longas que não geram valor acrescentado. A causa principal imbrica no passado recente e no presente de hoje. A Europa reconstruída no pós-guerra (com mãos e obras de muita gente nascida num outro sítio qualquer) já esqueceu os buracos das bombas e as feridas das injustiças, já esqueceu os absurdos do nacionalismo e os horrores do fascismo. Já esqueceu o cheiro a morte e a desumanização do “outro”. Já esqueceu o que une e solidifica as sociedades.
Este cheiro a podre tem causas e tem consequências. A causa principal é a inexistência de um verdadeiro projeto europeu capaz de mobilizar as diferentes gerações. Se a geração dos pais fundadores da UE e dos pais fundadores das democracias nos vários Estados-membros (com especial relevância nos países do Sul da Europa) acreditou no et pluribus unum, hoje há muitos políticos que nacionalizaram as suas ambições de construir um projeto comum e abreviaram o futuro para a data das próximas eleições. Os seus discursos não são apenas nacionalistas e populistas; são, quase sempre, construídos na base de grandes mentiras redutoras e pequenas verdades simplistas. Culpar o “outro”, o imigrante ou refugiado, é uma estratégia fácil, mas muito pouco inovadora. No passado, as doenças assumiam o nome das minorias recém-chegadas e a diferença de comportamentos, crenças ou culturas era punida com a expulsão, tortura e morte (por vezes na purificação do fogo das fogueiras inquisitórias).
As consequências aparecem quando se pergunta aos indivíduos o que pensam disto tudo, de onde pensam que vem o cheiro a podre. Surpreendentemente (ou talvez nem tanto), país após país, há um dedo apontado à classe política que tem governado os países da Europa (e a própria Europa) como responsável pelo que foi feito (e também pelo que não quiseram fazer). Emergem partidos à esquerda da esquerda e à direita da direita cavalgando o populismo quotidiano na procura de um benefício imediato e de uma vertigem de sucesso mediático. Oferecem um paraíso ao virar da urna. Uma miríade de soluções novas para velhos problemas. Uma radical mudança radical. A esquerda da esquerda aponta sobretudo o dedo ao “capital” e ensaia construir um projeto de descapitalização dos capitalistas como solução para o bem comum. A direita da direita aponta o dedo aos suspeitos do costume: os migrantes, refugiados, ao “outro”. São contra a Europa e a favor de um separatismo isolacionista. São a favor de um passado de fronteirização e de murificação dos territórios (físicos e conceptuais) e de um exercício do poder baseado na vigilância e na delação. O Poder do medo.
Em França, país actualmente entre eleições, o debate europeu é hoje entre um mal menor ou um mal maior. E os portugueses, como sempre, querem participar nesta contenda. Como sempre, há, entre os nossos compatriotas, os que têm o fado de estar do lado errado da história. Acreditam genuinamente estar certos, mas, o tempo acabará por o demonstrar, estão do lado errado. E o lado errado é, não tenhamos dúvidas, o que Marine Le Pen representa. O da não Europa. Da França fechada sobre si própria, xenófoba, islamofóbica, racista. Da França que gritará: “Le monde c’est moi!” E ficará a ouvir, sozinha, o eco da sua própria voz.
Estranhamente (ou talvez não), os partidos à direita da direita não se referem aos portugueses como “estrangeiros”, como migrantes que evidentemente, em muitos casos, foram e são. Não o fazem para (re)construir uma verdade que impede que os apelidássemos de partidos racistas, fascistas e xenófobos. É a velhinha frase: “Eu até tenho um amigo preto, azul, branco, vermelho, amarelo ou às pintinhas cor-de-rosa.” E alguns, poucos (quero acreditar que são poucos), rendem-se a esta velha técnica de malabarismo eleitoral. É a velha frase “entre apocalípticos e integrados” que volta para nos assombrar.
O meu texto de hoje é sobre esta metáfora (a da ratoeira) que nos acena com um belo pedaço de queijo da serra antes de nos aprisionar. Este não é o momento de hesitar. Enquanto europeus, estar (e votar) contra a extrema-direita é um imperativo de consciência e a única possibilidade de, no futuro, construir uma casa comum. Votar contra Marine Le Pen é honrar a França que acolheu e acolhe gerações de emigrantes portugueses e honrar a liberdade que faz parte do nosso mapa genético. Sem hesitações.
O autor escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico