“Apagão” no controlo dos esquemas de abuso fiscal
Quem não comunicar operações de planeamento fiscal abusivo pode ser punido com multas até 100 mil euros. Mas casos em que lei é aplicada são escassos e fisco não tem dados de coimas.
Bancos, consultoras ou escritórios de advogados são apenas algumas das entidades que estão obrigadas a comunicar à Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) as operações de planeamento fiscal agressivo que estão a preparar para os seus clientes de forma a reduzir a sua factura fiscal. Mas apesar de esta norma estar em vigor desde 2008, há um aparente ‘apagão’ em relação ao seu cumprimento.
O diploma que criou as novas regras prevê multas pesadas para os incumpridores, mas nos últimos nove anos apenas foram reportadas ao fisco 93 operações de planeamento fiscal, menos de 12 por ano, e não há informação sobre multas aplicadas a eventuais faltosos. Por outro lado, hoje, na página de internet da AT apenas estão publicadas 13 operações consideradas abusivas por parte da administração fiscal e as últimas foram comunicadas em 2010.
A legislação aprovada em 2008 prevê, em termos genéricos, que era obrigatório enviar à AT - na altura Direcção-Geral dos Impostos - os esquemas de planeamento fiscal agressivo que entidades como bancos ou advogados pretendiam vender aos seus clientes. Eram abrangidas nesta regra todas as operações que visassem oferecer vantagens fiscais. Com esta informação, o fisco obtinha dados por antecipação, podia dar melhores condições de combate à fraude e evasão fiscal à inspecção tributária e ficava obrigado a publicar na sua página de internet as operações que, desde logo, considerava abusivas, dissuadindo o seu uso. Quem não cumprisse ficava sujeito a multas que, no limite, podiam chegar aos 100.000 euros.
Diagnóstico
No preâmbulo do diploma, assinado pelo então secretário de Estados dos Assuntos Fiscais, Carlos Baptista Lobo, hoje na consultora Ernst & Young, fazia-se um diagnóstico da situação vivida em Portugal e assumia-se que se ‘copiavam’ as melhores práticas internacionais, como as vigentes nos Estados Unidos, Reino Unido ou Canadá.
A necessidade de alargar a obrigação de prestação de informação ao fisco a “entidades que prestam serviços de consultoria no campo fiscal” era justificada pelo facto de “os resultados provenientes do exercício da consultoria fiscal” já terem assumido “proporções absolutamente preocupantes”, alertava-se no preâmbulo do diploma, adiantando-se que “o fenómeno do planeamento fiscal agressivo ou abusivo, promovido por estes intermediários fiscais (…) corrói a integridade e a justiça dos sistemas fiscais, desencoraja o cumprimento por parte da generalidade dos contribuintes e aumenta injustificadamente os custos administrativos de fiscalização da máquina fiscal”.
A preocupação pelo que se passava na consultoria fiscal era ainda sublinhada pelo facto de este trabalho estar a ser “desenvolvido sem qualquer forma de regulação, não se encontrando muitas vezes sequer uma qualquer manifestação de preocupação com as fronteiras da actuação ilícita que podem estar a ser atravessadas ou com o princípio material fundamental da justiça na repartição efectiva dos encargos tributários”. E concluía-se que “muitos intervenientes neste sector de actividade concebem mesmo a sua missão, não como a promoção do cumprimento da lei fiscal e de erradicação do seu incumprimento, mas antes como a exploração sem limites nem peias das fragilidades da lei fiscal, mesmo que em desconformidade com o plano e o espírito legislativo”. Estavam apresentadas as razões que levavam o Governo a legislar, mas admitia-se, ainda assim, que a legislação era prudente.
Tudo somado, os objectivos do diploma visavam "melhorar a transparência e a justiça do sistema fiscal, assegurando-se ao mesmo tempo que os custos administrativos relacionados com estas obrigações não assumem significado relevante dado incidirem, fundamentalmente, apenas sobre as entidades que promovem junto de terceiros a utilização desses esquemas e que, portanto, têm deles perfeito conhecimento”.
Resultados
O primeiro balanço da nova legislação estava previsto para 2011, três anos depois da sua entrada em vigor, e nessa altura dever-se-ia recolher “os elementos úteis resultantes da sua aplicação para introdução das alterações que se mostrem necessárias”, estabelecia-se no diploma. Mas não houve qualquer revisão. Hoje, na página da AT estão publicadas apenas 13 operações que o fisco considera ser de planeamento fiscal abusivo: quatro dizem respeito a operações reportadas em 2008, quatro em 2009, duas em 2008/2009 e três em 2010. E não se sabe muito do que se passou a seguir.
Fonte oficial do Ministério das Finanças confirmou ao PÚBLICO que o diploma se encontra em vigor e que não foi reavaliado, mas as informações são escassas. “Entre 2008 e 2016, foram comunicados 93 esquemas”, adianta a mesma fonte, sublinhando que “no âmbito do combate à fraude e evasão fiscais a AT pode detectar operações susceptíveis de qualificação como planeamento fiscal abusivo, procedendo ao enquadramento tributário adequado, designadamente o art.º 38.º da Lei Geral Tributária”.
Em causa está um artigo da Lei Geral Tributária, uma norma geral anti-abuso que, na prática e em termos genéricos, dá à administração fiscal a possibilidade de reverter os efeitos fiscais de uma determinada operação desde que faça prova de que a mesma apenas serviu para obter vantagens fiscais.
Fonte oficial das Finanças remete ainda para a informação sobre esta matéria que consta nos Relatórios de Combate à Fraude e Evasão Fiscal disponíveis no Parlamento. Mas também aqui a informação não é muita. O relatório relativo ao ano de 2011 apenas refere que foram feitas correcções em sete operações de planeamento fiscal agressivo. Em 2013, duas operações. Em 2014 outras duas e em 2015 quatro operações.
Em nenhum dos casos há informação quantitativa dos resultados. E mesmo em relação à utilização da cláusula geral anti-abuso também não há informação específica sobre os resultados da sua aplicação.
O PÚBLICO tentou ainda saber se no âmbito da lei de 2008 havia coimas aplicadas pela não comunicação das operações, mas fonte oficial das Finanças apenas referiu que essa era uma informação “não disponível”. Para as perguntas sobre o que justificava a diferença entre as 93 operações comunicadas e apenas 13 terem sido consideradas abusivas e, como tal, publicadas na página da AT; sobre o que justificava a lei nunca ter sido revista; ou se o Governo ainda considera esta legislação útil, não houve resposta das Finanças.
O PÚBLICO também tentou contactar os vários secretários de Estado que passaram pelo Governo durante a vigência desta lei, para além do seu criador, Carlos Lobo. Sérgio Vasques, hoje professor universitário, foi quem se seguiu a Carlos Lobo, ainda no Governo de José Sócrates, e Paulo Núncio, hoje consultor fiscal no escritório Morais Leitão, Galvão Teles, Soares da Silva & Associados, mas não foi possível obter o respectivo comentário sobre o assunto.