A memória da escravatura é “dolorosa de se ver” e não cabe numa vitrine
Exposição do museu de Arqueologia associa-se a um projecto que quer resgatar das colecções de museus, arquivos e bibliotecas de Lisboa testemunhos do tráfico de escravos, em que Portugal teve um papel central durante 400 anos.
É de ferro maciço, fria, rugosa, pesada. O fecho parece uma cavilha ou uma chave tosca. Sabemos que foi feita para prender seres humanos, o que já de si é muito mau, mas tudo piora quando nos sugerem que a imaginemos colocada no pescoço de uma criança ou de um adulto que poderia ter ainda algemas nos pulsos e grilhetas nos pés. “Como é que se vive assim? Como é que se dorme?”, pergunta a arqueóloga Ana Isabel Santos, enquanto vai tirando das caixas estes objectos que dominam a exposição com que o Museu Nacional de Arqueologia (MNA) se associa a Testemunhos da Escravatura. Memória Africana, um projecto do Gabinete de Estudo Olisiponenses (GEO) e da Lisboa 2017 – Capital Ibero-Americana de Cultura.
Este programa, que se prolonga até ao final do ano e envolve 42 museus, arquivos e bibliotecas de Lisboa que se dispuseram a fazer um zoom sobre as suas colecções, pondo em destaque mais de 200 peças e documentos relacionados com a escravatura, não podia estar mais na ordem do dia, e isto não é só por causa das manifestações de racismo e xenofobia que vão acontecendo um pouco por todo o lado, herança de um passado histórico que está muito longe de ser suficientemente discutido.
Depois da visita de Marcelo Rebelo de Sousa a Gorée, no Senegal, a primeira de um Presidente da República português àquela ilha que foi um importante entreposto do tráfico de escravos sob domínio da coroa portuguesa entre os séculos XVI e XIX, muitos foram os que esgrimiram argumentos nas redes sociais e nas páginas dos jornais. De um lado os que se solidarizaram com o Presidente, que em Gorée sublinhou o papel de Portugal na abolição da escravatura, “um reconhecimento [por parte do poder político] da dignidade do homem”, ainda que tardio, admitiu Marcelo, primeiro no século XVIII, com o Marquês de Pombal, e depois no XIX. Do outro os que o condenaram por ter perdido a oportunidade de reconhecer publicamente e num palco internacional tão simbólico, onde o Papa João Paulo II pedira já perdão pela escravatura, as responsabilidades do país no tráfico de milhões de seres humanos durante 400 anos.
“Quisemos que este projecto estabelecesse pontes com essa parte sensível da nossa história”, diz Anabela Valente, que divide com Ana Cristina Leite o comissariado deste Testemunhos da Escravatura. Memória Africana. “A investigação tem feito muitos progressos nesta matéria, e o discurso sobre a nossa participação no tráfico negreiro até tem vindo a mudar, mas é preciso fazer mais, debater e reflectir mais.”
Um Museu. Tantas Colecções! (até 30 de Setembro), a exposição do museu de Arqueologia, quer dar um contributo para este debate que se impõe mostrando 30 conjuntos de peças saídas do seu acervo altamente diversificado, muitas delas “dolorosas de se ver”, feitas para “subjugar seres humanos”, para os dominar, inferiorizar e, no limite, “animalizar”, diz Ana Isabel Santos, a quem coube a curadoria, que partilha com Lívia Cristina Coito, a bibliotecária do MNA.
Para montar esta pequena exposição, a equipa do museu andou a vasculhar os arquivos e as reservas, diz o seu director, o arqueólogo António Carvalho, reclassificando peças em que ninguém pegava desde os anos 1940/50. Muitos dos objectos que agora se podem ver nunca foram expostos. Entre as “novidades” estão, por exemplo, duas coleiras de escravos do século XVIII, artefactos raríssimos com a identificação dos proprietários, que se julgavam perdidas há décadas — são mencionadas numa obra de José Saramago (apenas uma delas), Viagem a Portugal (1981), e em A Herança Africana em Portugal (2009), de Isabel Castro Henriques — e que foram recentemente localizadas nas reservas do MNA, num lugar inesperado, depois de uma investigação do semanário Expresso ter voltado a falar delas.
“Só a mais pequena se conhecia como sendo do museu. A coleira grande não é inventariada no tempo do Manuel Heleno”, diz Carvalho, referindo-se ao segundo director do museu, o homem que sucede ao fundador — o médico, arqueólogo e etnógrafo José Leite de Vasconcelos (1858-1941) — e que se doutorou, precisamente, com uma tese sobre os escravos em Portugal. “Vemos coleiras como estas em pintura em vários países europeus, mas muito poucos museus têm o objecto em si. Eram usadas nos escravos de casa, nos que viviam no ambiente doméstico dos proprietários.”
O que é uma manilha?
Nas vitrinas e paredes da pequena exposição do MNA há pintura barroca; uma lucerna romana (sec. I-II d.C.) com um escravo em tronco nu; várias figuras de cerâmica pintada, muito provavelmente de Estremoz e Barcelos, representando soldados africanos e mulheres negras de tanga com cestos portugueses; colares e outros adornos de missangas, conchas e contas de pasta de vidro, usados também como acessórios rituais ou como moeda no comércio de escravos e de outras mercadorias; cópias de regimentos da Casa da Índia e da Guiné e exemplares de literatura de cordel, em que os autores ou os personagens são negros. “São histórias atravessadas por personagens comuns numa cidade em que o uso dos escravos estava generalizado”, diz Lívia Cristina Coito, “textos em que aparece, muitas vezes, aquilo a que se chamava ‘língua de preto’”.
Apesar da popularidade da literatura de cordel, é a cópia do regimento da Casa da Índia e da Guiné que a bibliotecária destaca: “É um regulamento que D. Manuel I manda publicar em 1509 para ter a certeza de que nada lhe foge da mão no que toca ao que vem de África, da Índia e do Brasil, rotas comerciais de que ele tem o monopólio. Neste regulamento está previsto o fiscal, do fiscal, do fiscal”, acrescenta a comissária, explicando que as regras também se aplicavam aos carregamentos de escravos que vinham sobretudo de África. “O almoxarife ia ao porto contá-los e examiná-los para, depois, lhes pôr um preço, como se fossem realmente uma mercadoria qualquer.”
Nas vitrines ao lado há grilhetas, correntes, coleiras de pescoço e algemas, mas há também uma série de estranhos objectos que eram usados nas trocas comerciais na África subsariana, incluindo o comércio de escravos a partir da costa ocidental do continente, do século XVI em diante. Manilhas em ligas metálicas produzidas em Inglaterra, França e Alemanha, cruzetas de cobre e pequenos aros espiralados que mais parecem anéis XL, fazem parte deste sistema pré-monetário.
“É preciso ver que não são os portugueses que entram pelo continente e vão ao interior capturar pessoas. Antes da chegada dos navegadores e do estabelecimento de feitorias já as tribos africanas dominantes, muitas delas islamizadas, escravizavam outras tribos. O que os portugueses fazem depois é negociar com esses traficantes, também eles negros, que trazem os escravos do interior”, explica Ana Isabel Santos. “É claro que, sem os portugueses, esse tráfico de pessoas intercontinental provavelmente não se realizaria.” E não se realizaria, em particular, nos moldes em que foi feito, com quantidades astronómicas de homens, mulheres e crianças a serem deslocadas para a Europa e sobretudo para as Américas, onde eram forçados a trabalhar nas grandes plantações de cana-de-açúcar e de café, nas minas de ouro e de diamantes que enriqueciam a coroa.
“Como as sociedades africanas tradicionais não tinham moeda, usavam-se estas manilhas-bracelete, muito apreciadas pelos africanos e semelhantes às de adorno, para as transacções”, acrescenta a arqueóloga, explicando que o preço dos escravos subiu exponencialmente em pouco tempo: nos primeiros anos do século XVI, podia trocar-se um ser humano por 10 a 12 manilhas e, pouco tempo depois, era impossível comprá-lo por menos de 40 a 50, de acordo com documentos referentes à Feitoria de São Jorge da Mina (actual Gana), um dos principais entrepostos, local onde o rei controlava tudo, chegando até a nomear as prostitutas que serviam os militares portugueses, acrescenta o director do MNA.
“As coisas começaram devagar, mas depois a escala disparou e com o aumento da procura, naturalmente, os preços subiram”, diz a comissária do GEO, Anabela Valente. O primeiro carregamento de escravos que chegou a Lisboa, em 1441, tinha apenas dois indivíduos, segundo a Crónica dos Feitos da Guiné, de Gomes Eanes de Zurara (1410-1474), cronista–mor do reino no tempo de Afonso V, mas estima-se que só Portugal seja responsável pelo tráfico de cinco milhões de africanos nos quatro séculos em que foi uma nação esclavagista. “A certa altura, na capital do império, toda a gente tinha escravos, fossem ricos, fossem pobres. Só o número variava.”
Primeiro Portugal e depois Inglaterra, França, Espanha, Holanda, Brasil e Estados Unidos fizeram do tráfico negreiro um importante ingrediente da sua economia, levando dez a 12 milhões de africanos para a Europa e para o continente americano.
Explicar o presente
O que o projecto Testemunhos da Escravatura. Memória Africana pretende, explica Anabela Valente, é pôr museus, arquivos e bibliotecas a olhar para as suas colecções procurando peças e documentos que, directa ou indirectamente, possam estar ligados ao tráfico de escravos, à luta contra a escravatura e ao movimento abolicionista, mas também às motivações económicas que levaram vários estados europeus a apostar na migração forçada intercontinental de milhões de homens, mulheres e crianças, completamente reféns de um sistema que não dava valor à sua vida, que os tratava com extrema violência e sem qualquer dignidade. “Queremos que as instituições que participam trabalhem a iconografia do africano, mas também que procurem peças que falem do dia-a-dia dos escravos, da maneira como viviam, das coisas em que acreditavam, do que produziam…”
O que o programa propõe, disse-o recentemente o coordenador-geral da Lisboa 2017 – Capital Ibero-Americana de Cultura, António Pinto Ribeiro, é que se olhe para o passado e que se procure conhecer melhor uma realidade que tem impacto no mundo contemporâneo. “A escravatura existe ainda hoje e é um problema grave. O racismo também é um problema daí derivado e são necessárias formas de o entender e combater”, defendeu Pinto Ribeiro na apresentação de Testemunhos da Escravatura.
Uma das peças exposta agora no museu de Arqueologia é uma pequena figura em bronze, representando um indivíduo, não se sabe se homem se mulher, com uma grande argola ou grilheta no tornozelo. Foi feita pelo povo Dogon, do território que hoje pertence à República do Mali, que foi escravizado durante séculos, mesmo antes da chegada dos portugueses. “O professor Mário Varela Gomes ajudou-nos a identificá-la e a reclassificá-la. Não sabemos quando foi feita, mas a técnica usada é conhecida da cultura Dogon desde o século XI”, explica Ana Isabel santos. “A escravatura é milenar, mesmo no nosso território, e os portugueses foram, infelizmente, decisivos no crescimento do tráfico ao longo de séculos. O que é incrível é que ainda hoje aconteça. Tudo isto [aponta para coleiras e algemas expostas] é assustador, mas a escravatura é mais do isto, muito mais.” O que faz a um ser humano, reforça a comissária, não se pode mostrar numa exposição, não cabe numa vitrine.