Parte da história da música contemporânea em Portugal contada em Aveiro
Um novo festival que parte das efemérides dos 40 anos dos Encontros Gulbenkian de Música Contemporânea e dos 20 anos das Jornadas Nova Música para fazer uma ponte com o presente e o futuro da criação musical.
O Teatro Aveirense recebe a partir desta sexta-feira um novo festival dedicado à música contemporânea — Reencontros de Música Contemporânea (RMC) — uma iniciativa das associações culturais Arte no Tempo e Atelier de Composição, que nesta sua primeira edição evoca duas efemérides: os marcantes e pioneiros Encontros Gulbenkian de Música Contemporânea (1977-2002) e as mais efémeras Jornadas Nova Música (1997-2001), criadas em Aveiro por um grupo de estudantes de composição.
O concerto de abertura (esta sexta-feira, às 21h30) é preenchido por uma obra intemporal — a Paixão segundo São João, de J. S. Bach, na interpretação da Orquestra XXI, sob a direcção de Dinis Sousa — mas até ao próximo dia 7 de Maio, uma parte da história da música contemporânea em Portugal será contada a partir de algumas das figuras relevantes e dos agrupamentos que criaram para divulgar a nova música.
A programação inclui reconstituições dos alinhamentos dos concertos inaugurais de agrupamentos como o Grupo de Música Contemporânea de Lisboa, criado por Jorge Peixinho em 1970, e o Grupo Música Nova, fundado por Cândido Lima em 1975, e concertos por intérpretes de várias gerações, entre os quais a pianista Madalena Soveral, o Quarteto de Matosinhos com a pianista Elsa Silva, a Orquestra das Beiras e várias formações ligadas aos Conservatórios de Aveiro e do Porto, às Universidades de Aveiro e do Minho e à ESMAE.
Conferências e conversas com compositores como Armando Santiago, Cândido Lima, Filipe Pires, Virgílio Melo, António Sousa Dias e Tiago Cutileiro, oficinas e outras actividades preenchem também a programação concebida por Diana Ferreira (n. 1976) e Pedro Junqueira Maia (n. 1971), respectivamente representantes das associações Arte no Tempo e Atelier de Composição, vocacionadas para a divulgação da música contemporânea.
Uma certa nostalgia
Os Encontros Gulbenkian de Música Contemporânea (EGMC) marcaram profundamente os organizadores na época em que eram estudantes de composição, pois eram quase o único espaço português em que se podia assistir a concertos de música recente e trouxeram a Lisboa os principais compositores da vida musical internacional. “Não havia sequer Internet. Aguardávamos pelos EGMC para conhecer as novidades (algumas nem tão novas assim) e conhecer pessoas com quem discutíamos o que ouvíamos e nos faziam questionar muito do que conhecíamos”, conta Diana Ferreira, que é também crítica do PÚBLICO. “Não podemos esquecer-nos de que ouvir as obras mais recentes no iTunes é uma experiência muito mais limitada do que partilhar o momento da sua execução e a escuta no espaço em que a música acontece.”
Reconhece-se na concepção dos Reencontros uma certa nostalgia, mas os organizadores têm consciência de que a vida musical mudou muito. “O tempo em que a música contemporânea se restringia aos chamados ‘guetos’ não era a situação ideal”, refere Diana Ferreira. “É essencial que a música do nosso tempo seja tocada ao longo das temporadas, atingindo públicos que de outro modo não teriam acesso a ela; mas faz igualmente falta o ‘concentrado’ altamente enriquecedor dos EGMC em que intérpretes e compositores — mas também teóricos, estetas e público — se encontravam para partilhar ideias e preocupações.”
A ideia de organizar os Reencontros surgiu em 2014 e foram inicialmente pensados com periodicidade bienal. “A vontade deve-se à Diana, assim como a maior fatia do trabalho. Eu fui colaborando aos poucos, sugerindo coisas, argumentado outras... atirando lenha à fogueira”, diz Pedro Junqueira Maia. “Quando penso na quantidade de música que me interessa e que não chega a ser tocada por cá (mesmo de portugueses!), ou no desinteresse de algumas propostas que alcançam um destaque incompreensível, ou ainda na desmotivação de alguns compositores com um trabalho sério que vivem situações marginais, sinto o dever de partilhar com o público a minha ideia de música”, refere Diana Ferreira. Considera também fundamental envolver as comunidades escolares, tanto enquanto público como através da participação directa. “Foi com grande alegria que participámos em acções de divulgação de música electroacústica numa escola básica local.”
Comparando a actual situação da música contemporânea em Portugal com a que se vivia há cerca de 20 anos, Diana Ferreira constata que, “por um lado, há cada vez mais profissionais com elevado nível técnico para abordar o repertório mais recente”, só que “parece nunca haver tempo para que os projectos de interpretação atinjam grande maturidade”. Nota que há cada vez mais gente a escrever música mas, por outro lado, existe desinvestimento nas encomendas. “Talvez até haja mais, mas sabe-se que os honorários — quando não passam de ficção – raramente vão acima de valores simbólicos. Os compositores escrevem no tempo que lhes sobra das outras actividades com que garantem a subsistência.”
Herança da geração de 60
Os Reencontros assinalam a herança de quatro agrupamentos surgidos no contexto dos EGMC: o Grupo de Música Contemporânea de Lisboa, criado por Jorge Peixinho (1970), o Grupo Música Nova de Cândido Lima (1975), a Oficina Musical de Álvaro Salazar (1978) e o ColecViva de Constança Capdeville (1985). “Na sequência do contacto da Diana, falei-lhe da minha intenção de registar o programa original de cada um dos quatro grupos e decidimos fazê-lo já neste projecto em Aveiro”, explica Junqueira Maia.“A partir deste núcleo fomos construindo uma programação à volta dos compositores fundadores dos grupos e da sua geração.” Para Junqueira Maia, “a contemporaneidade assume mais interesse quanto assimilada a sua história.” O estudo sobre os grupos fundados por estes compositores, incluindo o registo em vídeo de alguns dos seus concertos, permitiu-lhe aperceber-se “do que a geração de 60 fez no nosso país”. O Grupo de Música Contemporânea de Lisboa continua activo, assim como a Oficina Musical, embora esta última não participe nos Reencontros, e o Grupo Música Nova, de Cândido Lima, entretanto extinto, foi propositadamente re-activado para esta ocasião. Quanto ao ColecViva não prosseguiu depois da morte de Constança Capdeville, mas há informação a preservar, tendo o seu espólio sido recentemente depositado na Biblioteca Nacional de Portugal.
“Recriações das primeiras apresentações da Oficina Musical e do ColecViva estiveram agendadas, mas por contingências várias acabaram por ser adiadas”, diz o responsável pelo Atelier de Composição, associação que tem publicado várias monografias sobre compositores portugueses contemporâneos (um volume dedicado a Filipe Pires será lançado a 29 de Abril). Mas haverá conferências sobre Constança Capdeville e Álvaro Salazar, a cargo de António de Sousa Dias e do próprio Pedro Junqueira Maia.
Outras propostas incluem a 7 de Maio o concerto “Quatro Compositores da Geração de 60” (Capdeville, Peixinho, Lima e Salazar) e a estreia de uma série de peças escritas por estudantes de música a partir das Figurações, para instrumento solo, de Filipe Pires, as quais serão interpretadas na íntegra a 29 de Abril. Destaca-se ainda a presença do compositor Armando Santiago (n. 1932), colega de Clotilde Rosa, Luís Pereira Leal, Filipe Pires e Jorge Peixinho, com um percurso desenvolvido no estrangeiro, em especial no Canadá. Vem a Portugal propositadamente para os Reencontros, estando programada a estreia nacional de um quarteto de cordas e a estreia absoluta de uma obra para piano, bem como uma pequena conversa com o compositor.