The Conversation

As técnicas das notícias falsas do século XIX continuam a resultar

As notícias falsas parecem credíveis porque recombinam pedaços de notícias, nomes, imagens, pessoas e locais que já vimos em contextos semelhantes.

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O escritor alemão Theodor Fontane, autor de notícias falsas nos anos 1860, retratado por Carl Breitbach Creative Commons

Donald Trump aparenta ter uma definição clara de “fake news: as histórias que o criticam a si e à sua Presidência são “falsas” e as que o elogiam são “verdadeiras”.

À primeira vista, esta lógica não faz sentido. Mas, ao mesmo tempo, a forma como Trump pensa sobre as notícias falsas revela o motivo central pelo qual elas funcionam.

Na minha recente investigação, tenho feito engenharia inversa a artigos de notícias inventadas do século XIX, de modo a analisar a sua lógica, e descobri que as “fake news” são eficazes porque nos dizem algo sobre o mundo que, de certa forma, nós já sabemos. Isto pode parecer contra-intuitivo.  Mas uma análise ao trabalho de um autor de notícias falsas do século XIX ajuda a explicar este fenómeno – e aquilo que acontece hoje em dia.

O falso correspondente no estrangeiro

As notícias falsas prosperaram no século XIX. Durante este período, a circulação de jornais e revistas disparou devido a inovações na tecnologia da imprensa e a papel mais barato. Instalaram-se agências de notícias profissionais em grandes cidades de todo o mundo, ao mesmo tempo que o telégrafo permitia o envio rápido de mensagens entre continentes.

As notícias tornaram-se cada vez mais estandardizadas, com os jornais a cobrirem, geralmente, os mesmos assuntos, a adoptarem a mesma linguagem formulada e a apresentarem histórias nos mesmos formatos. Neste negócio de notícias emergente e acelerado, a concorrência era feroz e, face à padronização crescente, os editores precisavam de encontrar maneiras de se destacarem.

Uma estratégia envolvia o envio de correspondentes para o estrangeiro. A ideia era que estes correspondentes poderiam fornecer histórias e análises de um ponto de vista pessoal, que os leitores poderiam considerar mais apelativas do que as reportagens padronizadas e impessoais que vinham das agências de notícias.

No entanto, enviar um repórter para o estrangeiro era caro e nem todos os jornais o podiam custear. Estes encontraram uma solução criativa e muito mais barata: contratavam escritores locais para fingirem que estavam a enviar notícias do estrangeiro. Na década de 1850, o fenómeno estava tão generalizado na Alemanha que se tinha tornado um género – “unechte Korrespondenz”, ou “Correspondência falsa”, como lhe chamavam as pessoas na imprensa alemã.

Como criar uma notícia falsa do século XIX

Um destes correspondentes era Theodor Fontane, um farmacêutico alemão que se tornou jornalista e que viria a escrever alguns dos mais importantes romances do realismo alemão. (Se nunca ouviu falar de Fontane, pense nele como o Dickens da Alemanha.)

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Em 1860, Fontane – que enfrentava dificuldades financeiras – juntou-se à redacção do Kreuzzeitung, um jornal berlinense ultraconservador. O jornal deu-lhe a tarefa de fazer a cobertura sobre a Inglaterra e, ao longo de uma década, Fontane publicou história após história “a partir” de Londres, encantando os seus leitores com relatos “pessoais” de acontecimentos dramáticos, como o devastador incêndio de Tooley Street, em 1861.

Mas, durante toda esta década, Fontane nunca atravessou o Canal da Mancha.

O mais espantoso – e a parte que continua a ter eco nos dias de hoje – é como Fontane conseguiu fazer isto. A história de Fontane sobre o Grande Incêndio ilustra o seu processo. Quando decidiu escrever sobre o incêndio, este já decorria há dias e havia notícias sobre ele em praticamente todos os jornais.

Fontane consultou estes relatos para ter noção daquilo que os leitores já sabiam sobre a catástrofe. Recortou os artigos antigos, escolheu as passagens mais relevantes e colou-as umas às outras para obter o seu relato – isto torna-se claro ao comparar o seu texto com estas fontes. Depois, para aumentar o drama, Fontane escreveu novas passagens com detalhes e personagens que eram completamente fabricadas, tal como o “companheiro” com privilégios especiais que, alegadamente, o ajudou a atravessar o cordão de segurança da polícia em redor da zona do incêndio.

Fontane relatou, então, o que “viu” (o que se segue é uma tradução do artigo em alemão):

Hoje estive no local e é uma visão terrível. Vêem-se os edifícios ardidos como uma cidade numa cratera (…). Os incêndios sobrevivem de forma assustadora nas profundezas e a qualquer momento uma nova labareda pode emergir de qualquer monte de cinzas.

É provável que os leitores tenham acreditado em Fontane, porque a sua história confirmava muitas coisas que já sabiam devido a notícias anteriores. Fontane tinha o cuidado de usar imagens familiares, descrições estereotipadas e factos conhecidos sobre Londres. Ao mesmo tempo, enfeitava estes elementos familiares para os tornar mais interessantes.

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O incêndio de 1861 em Tooley Street

O seu texto estava escrito de forma a inserir-se perfeitamente naquilo que percorria o circuito dos meios de comunicação em massa do século XIX.

Ecos nos dias de hoje

As notícias falsas dos dias de hoje também são escritas dentro de um sistema mediático fechado. Esta é uma das razões principais por que estas histórias – mesmo as mais absurdas – parecem credíveis o suficiente para as pessoas acreditarem nelas; elas recombinam pedaços de notícias, nomes, imagens, pessoas e locais que já vimos em contextos semelhantes. Assim que este fundo de credibilidade fica estabelecido, os elementos sensacionalistas e inventados podem ser introduzidos de maneira muito mais convincente.

Veja-se uma das obras-primas de “fake news” da campanha eleitoral americana do ano passado, a história falsa sobre as pilhas de caixas com boletins de voto que “apareceram” num armazém no Ohio e que conteriam votos fraudulentos a favor de Clinton. Cameron Harris, o licenciado de 23 anos que escreveu a história, explicou posteriormente ao New York Times como tinha abordado o assunto: sabia que tinha de ligar a sua história a uma narrativa conhecida para que esta fosse aproveitada.

Segundo Harris, essa narrativa tinha sido estabelecida pelas repetidas alegações de Donald Trump sobre eleições “viciada”:

Trump dizia “eleições viciadas, eleições viciadas”. As pessoas estavam predispostas a acreditar que Hillary Clinton só podia vencer através de fraude.

Tal como Fontane tinha o seu “companheiro”, Harris também inventou uma pessoa – um electricista e homem comum – que encontrou as caixas com boletins de voto numa divisão pouco usada de um armazém. Harris citou-o e até acrescentou uma fotografia que mostrava um homem ao lado de uma pilha de caixas de plástico pretas.

O facto de Harris ter encontrado a imagem no Google, e de ela representar um britânico, não importava: ela encaixava-se na ideia que os leitores poderiam ter de um electricista e de caixas contendo boletins de voto.

A produção deste tipo de notícias falsas tem-se tornado mais fácil porque já não há maneira de evitar os meios de comunicação em massa. Numa palestra em 1994, o sociólogo Niklas Luhmann fez uma declaração famosa: “Tudo o que sabemos sobre a nossa sociedade, ou sobre o mundo em que vivemos, sabemos devido aos meios de comunicação de massa.”

Pense bem: que quantidade de informação sabe em primeira mão, a partir da experiência pessoal, em comparação com aquilo que sabe devido aos manuais escolares, à televisão, aos jornais e à Internet?

Gostamos de acreditar que seleccionamos os meios de comunicação que posteriormente moldam e se tornam parte da nossa realidade. Mas as coisas já não funcionam assim. Desde a segunda metade do século XIX, os meios de comunicação de massa moldam a sua própria realidade e as suas próprias narrativas.

No início de 2016, os americanos passavam quase 11 horas por dia a olhar para ecrãs. Estes dados nem sequer reflectem o aumento fenomenal do consumo de notícias que aconteceu na recta final da campanha presidencial e das eleições. Dentro deste turbilhão, pode ser difícil perceber o que é falso e o que não é.

Tradução de Rita Monteiro

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