Os malditos do Estado Novo
Como é que o Estado Novo lidava com o mendigo, o vadio, o cadastrado, “a prostituta de escândalo público”, o homossexual e outras figuras que entendia como um perigo para a identidade nacional? Que modelo criou para os reprimir e regenerar?
Conhece bem o emaranhado de ruelas, escadas, becos que sobem da Ribeira para o Morro da Sé. Tantas vezes correu à frente da polícia e se sumiu dela ao virar de uma esquina. Agora não, que lhe pesam os 85 anos. Quando era um miúdo maltrapilho e esfaimado. Viveu dois anos na rua até ser levado pela Polícia de Segurança Pública para o Albergue Distrital de Mendicidade do Porto. “Isto é um labirinto”.
É a memória mais forte que Jerónimo Ferreira guarda da infância. O avô, que trabalhava no Hospital Conde Ferreira, fora dispensado, como um trapo velho. Deixara de pagar a renda da casa, na “ilha do 30", no interior da Ribeira. “O encarregado, combinado com o senhorio, veio aqui com a polícia. Puseram a nossa tralha na rua. O meu avô encostou-se aqui, eu também.”
Jerónimo diz isto e encosta-se ao muro das Escadas do Barredo. Do outro lado do muro já não está a insalubre e sobrelotada “ilha do 30”. Desapareceu durante o processo de reabilitação do centro histórico que foi gerido pelo CRUARB – Comissariado para a Renovação Urbana da Área de Ribeira/Barredo (1974-2003)
Uma “Ilha”, no Porto, é um conjunto de casas térreas, minúsculas, dispostas ao longo de um apertado arruamento, nas traseiras da casa de uma pessoa com algumas posses, como um pequeno proprietário, um comerciante ou um artesão. Desde o século XIX, atraída pela industrialização, viera tanta gente do campo para a cidade em busca de quem lhe comprasse o esforço. E as “ilhas” eram uma espécie de solução de compromisso entre as receitas mínimas dos operários e os recursos modestos dos seus promotores. Brotavam na periferia da cidade, onde se concentrava a indústria, mas também no centro, como se podia ver no Barredo.
O avô tinha vindo do Minho ainda novo. Uma vida inteira a trabalhar, sempre com o estômago colado às costas, e nunca conseguira amealhar um pé-de-meia. Não havia pensão de reforma. A assistência era diminuta. Foi levado para o Albergue Distrital de Mendicidade, anexo à PSP, no Carvalhido. Havia por lá outros idosos que já só podiam estender a mão à esmola.
Nos primeiros anos da ditadura, a PSP começara a recolher mendigos e a levá-los para espaços geridos por si. Fazia isso no Porto, em Lisboa e em Coimbra. Em 1940, tal prática foi reconhecida pelo Governo, que previu a criação de albergues destinados a “indigentes inválidos e desamparados, pessoas encontradas a mendigar ou suspeitas de exercerem mendicidade e menores em perigo moral” em todos os distritos, administrados por uma comissão presidida pelo comandante da polícia. O que causou alguma “estranheza”, uma vez que o Estado Novo tinha “atribuído a organismos não estatais e, em particular às instituições da Igreja Católica, um papel preponderante na gestão do social”, escreve a antropóloga Susana Trovão, que assinava Susana Pereira Bastos quando publicou o livro O Estado Novo e os seus vadios (1997).
Jerónimo foi levado para casa da mãe dele. Não aguentou mais de dois ou três dias por lá. “Tinha-lhe cá um verdete! Era uma mulher do rio, uma mulher rude.”
A mãe de Jerónimo andava com cestos de carvão à cabeça, "ofegando e resfolegando" por aquelas ruas. A carvoeira aparece, toda enfarruscada, no documentário que Manoel de Oliveira estreou em 1931, Douro, Faina Fluvial. O pai era “um malandreco”, que ganhava a vida como maquinista no Douro e que haveria de se sumir num barco da marinha mercante. “Ela era jeitosa. Ele pimba. O meu avô mandou-a à vida dela."
Deixando para trás o filho ilegítimo, a mãe fez vida com um homem que morava ali perto, nos Guindais. Jerónimo cresceu com os avós. E, com a ida do avô para o albergue, a avó já num asilo, só lhe restava a casa materna. “Era uma sala e uma cozinha pequena. Havia um par de tijolos. Metia-se a lenha. Punha-se a panela. Naquele tempo era assim. O casal dormia na cama e as crianças no chão. Pus-me a andar. Tinha nove anos.”
Aliou-se a outros rapazes que tinham sido postos na rua ou que tinham fugido para a rua por conflitos familiares, maus-tratos, abuso sexual. À noite, enrolavam-se nuns farrapos, encostavam-se uns aos outros. Lembra-se de dormir junto à Estação de São Bento e nas imediações da Praça D. João I e ao pé do Cais da Corticeira, onde tantos barcos descarregavam a carqueja que então se usava como acendalha. “Quantas vezes, a gente via a polícia e se atirava ao rio para não ir para a prisão? Naquele tempo, quem andava na rua era dado como vadio. O Salazar tinha essas ideias…”
A repressão desde o virar do século
Não era uma originalidade do presidente do Conselho, António de Oliveira Salazar. Durante séculos, os mendigos tinham tido um papel na sociedade. Serviam não só para vincar a diferença entre os ricos e os pobres, mas também para conciliar os ricos com o divino. Havia até quem visse nos mendigos a imagem de Jesus Cristo, refere Susana Trovão no seu livro. Só que tudo isso mudara na transição do século XIX para o século XX.
Cavou-se o fosso entre os ”bons” e os “maus" pobres. Só a mendicidade "por necessidade", associada à invalidez, à menoridade ou à velhice, podia ser tolerada pelas autoridades. Andaria à esmola quem tivesse caderneta e placa a atestar o estatuto. Os outros, os "falsos" mendigos, arriscavam-se a ser julgados como vadios e enclausurados. O mais comum era a polícia capturá-los, levá-los para os calaboiços e soltá-los volvidos uns dias.
Com a instauração do Estado Novo, em 1933, a repressão intensificou-se. E tudo se agravou com a II Guerra Mundial, apesar da neutralidade portuguesa. Por falta de matéria-prima e combustível, aumentou o período de inactividade industrial. Ficou impossível emigrar para destinos como o Brasil e os Estados Unidos. As medidas tomadas pelo Governo para enfrentar a crise revelaram-se incipientes. Os relatórios mensais de governos civis e polícias mostravam até onde podiam ir os efeitos do desemprego, da desvalorização dos salários, da carestia de vida, da escassez de bens de primeira necessidade. Havia cada vez mais gente na mendicidade, no pequeno furto, na prostituição…
No Porto, em 1941, no ano em que Jerónimo ficou na rua, logo em Janeiro o Relatório de Carácter Político-Social da PSP menciona um aumento considerável do “número de pessoas a esmolar”, sobretudo, “bandos e menores” e “mulheres com crianças ao colo”. Ali, como noutras cidades, encarregava-se de as reencaminhar para as terras de origem ou de as encerrar com promessa de regeneração e expectativa de gratidão.
Havia que “limpar” as ruas, até por uma questão de “decoro” perante os estrangeiros que visitavam o país, admitia o legislador no preâmbulo do diploma que em 20 de Abril de 1940 criou os albergues da mendicidade. As pessoas ficavam nos albergues enquanto se decidisse “o destino mais adequado à sua condição”. E eram forçadas a trabalhar, se tivessem capacidade para isso. Os menores, que ali estavam a título de colaboração com a justiça tutelar, também tinham de se moldar aos valores do Estado Novo, que se resumem na tríade “Deus, Pátria, Família”.
Uma retrete para um prédio inteiro
Não seria política com grande apoio popular esta de perseguir quem não tinha eira nem beira. Havia muito quem não se identificasse com aquela acção policial, percebe-se ao ler O Estado Novo e os seus vadios. Para a maioria, pedir uma esmola era um acto normal. Primeiro, porque preenchia “funções simbólicas”. Segundo, porque era uma forma tradicional de ultrapassar “condições incertas, sazonais e precárias de largos sectores de trabalhadores portugueses, sobretudo no contexto de uma prolongada crise”, como houve durante a depressão de 1929 ou na II Guerra Mundial.
O apregoado superavit (1938 e 1947) reflectia o aumento das exportações de volfrâmio e sardinhas, o crescimento dos transportes marítimos, a prestação de serviços a diplomatas, espiões e refugiados. Só que poucos lucravam com isso. A pobreza era generalizada. E particularmente visível em bairros como Ribeira e Barredo, no Porto, ou Mouraria, Alfama, Bica, Madragoa ou Cais do Sodré, em Lisboa.
Nas casas altas e estreitas do centro histórico do Porto abundavam “subalugas” ou “sugas”, isto é, pessoas que arrendavam prédios e subarrendavam divisões.
“Era um tempo de miséria”, suspira Etelvina Martins Sá, um ano mais nova do que Jerónimo, uma vida inteira na Ribeira. “Havia gente que tinha uma casa maior, dividia a sala, fazia quartos e alugava um a cada família. Não foi o nosso caso. A minha mãe ficou viúva, mas arranjou uma salita para morar com os quatro filhos. Sempre tínhamos uma porta para fechar. Depois uma tia minha também ficou viúva e juntou-se a nós com a filha.” Na “salita” faziam sala, cozinha e quarto. “À noite, botava-se colchões no chão. Dormia um para os pés, outro para a cabeceira.” As retretes eram partilhadas e de uso limitado. No prédio de Etelvina só havia uma no terceiro andar. “A subaluga só das 8 às 9 da noite nos deixava ir lá fazer os desejos. A gente ia botando no balde ou assim e àquela hora ia despejar.”
O pai de Etelvina, que trabalhava nos caminhos-de-ferro, morrera aos 39 anos. Doenças infecto-contagiosas como a tuberculose propagavam-se a grande ritmo. A idade média de morte era 36 a 39 anos para os homens e 41 e 44 anos para as mulheres. A tuberculose encabeçava as causas de óbito. E a mortalidade infantil – hoje uma das mais baixas do mundo, o que o director-geral de saúde, Francisco George, atribui “à grande melhoria das condições de vida dos portugueses, particularmente depois de 1974, traduzida pela criação do Serviço Nacional de Saúde, pela condução de programas de saúde e por grandes obras públicas de construção de infra-estruturas de saneamento do meio ambiente, bem como por melhor habitat” – era então elevadíssima. Em 1941, 150 em cada mil morriam antes de atingir um ano de idade.
Não terminou ao mesmo tempo que a guerra, a miséria. Ainda era assim quando o padre Jardim Moreira se tornou pároco no centro histórico do Porto, em 1969. Amiúde, traziam-lhes crianças doentes para baptizar antes do último suspiro. Uma vez, trouxeram-lhe um miúdo que nunca tinha sido lavado. “Não pode ser. O baptismo não é resposta para isso. Isso resolve-se com um sabonete e um banho”, disse-lhe. Começaram a acusá-lo de não querer salvar alminhas.
“Isto era tudo muito, muito pobre”, diz o pároco de Vitória e São Nicolau, presidente da Rede Europeia Antipobreza/EAPN – Portugal. “Eu tinha filas de gente para atender. Lembro-me de pagar quartos de banho exteriores para as pessoas dormirem. Havia uma senhora que alugava o garfo a colher para as pessoas comerem. Lá em cima, na Vitória, onde eu morava, as pessoas faziam as necessidades num balde e à noite despejavam para a rua.”
Em tempo de crise, pior. O problema de abastecimento era tal que a certa altura o Governo instituiu o racionamento de produtos essenciais.
A mãe de Etelvina andava de manhã à noite a arear casas alheias, recorria às casas de penhores, pedia fiado na mercearia e não conseguia alimentar os quatro filhos. “Ia-se ali ao quartel pedir uma sopa”, conta Etelvina, numa alusão ao Mosteiro de São Bento da Vitória, onde funcionava o Tribunal Militar e a Casa de Reclusão e o Aquartelamento de Infantaria 31. “A Ordem de São Francisco também dava. Depois começou a Legião Portuguesa a dar sopa ao meio-dia às escolas. Era uma sopa boa, com grão-de-bico e macarrão. Os pais andavam a fazer carretes ou assim, chegavam a casa e os filhos já tinham comido.” Era menos um peso sobre as suas costas já vergadas.
Ferreira Dias Júnior, ministro do Comércio e Indústria, admitiu, no livro Linha de Rumo - Notas da Economia Portuguesa (1945), que o salário médio de um operário nem dava para três quartos das necessidades alimentares. Só com "alimentação deficiente" e “trabalho de outros membros da família", que não apenas o "chefe", se conseguia aguentar até ao final do mês.
“A minha mãe, para a gente ir trabalhar, ia pedir e alguns aceitavam dar trabalho”, relata Etelvina. “Não podíamos ir descalços. A minha mãe comprou umas sapatilhas de borracha por baixo e lona por cima. A gente andava na rua a fazer recados e assim. Trabalhei em vários sítios. Andei à esfrega nas casas das senhoras. Comecei cedo a ajudar a minha mãe.” Tinha 13 anos quando se empregou num laboratório de cosmética.
Um banho por semana
Jerónimo podia ter crescido como Etelvina? Não queria ser o enjeitado da família que nem sequer sentia como sua. E nem a mãe, nem o padrasto se lançaram no seu encalço. “O meu padrasto também trabalhava na beira do rio. Nunca me repreendeu, mas também nunca me perguntou se tinha fome, onde é que andava.”
Muita larica passou. “Para comer, íamos para a Estação de São Bento. As senhoras iam carregadas com as malas. Eu só sabia dizer: ‘25 tostões’. Para mim, era muito dinheiro. Lá ia carregado para a Rua de Cedofeita, para o eléctrico, para onde fosse.” Às vezes, entravam nas tabernas. Os homens enchiam-nas depois do trabalho. Apoiavam os cotovelos no balcão, pediam uma pinga e repetiam lérias, proezas e adversidades. Os rapazes abriam caminho, pediam uma isca, um papo-seco, um “pirolito”, isto é, uma gasosa. “Quando o homem ia buscar o ‘pirolito’, a gente já tinha as iscas na mão e fugia pela porta fora. Quando tivéssemos dinheiro, íamos lá pagar”, recorda. “Roubei muito. Roubava pão. Roubava fruta. Só roubava para comer.”
Ensaiavam mil estratégias para escapar à polícia. “Um dia, estava com um rapaz que ainda hoje é vivo, o Manel, e apareceu o ‘cara lavada’. O ‘cara lavada’ andava à civil atrás dos rapazitos. ‘O que estão aqui a fazer meninos? Estavam a pedir, que eu vi. Vêm comigo para a esquadra.’ Lá fomos para a primeira esquadra. Começaram a revistar a gente. A gente escondia o dinheiro na gola do casaco. ‘Onde moras?’ Não tenho casa. ‘Não tens mãe?’ Não sei, não conheço a minha mãe. Não tens família? ‘Tenho o meu avô, que ainda é vivo, está no Carvalhido. Tens lá o teu avô? Então vais para a beira dele.’ Olhe, foi a minha sorte. Podia dar em ladrão, em tudo, mas não.”
No Albergue de Mendicidade, as pessoas distribuíam-se de acordo com o género. Homens para um lado, mulheres para outro. Rapazes para um lado, raparigas para outro. “Dormíamos em camaratas”, lembra. “Alguns ricos não tinham a limpeza que nós tínhamos. Ao fim de semana, roupa lavada para a cama e para nós. Havia uma casa de banho grande com chuveiros. Éramos obrigados a tomar banho uma vez por semana.”
Jerónimo tinha 11 anos. À noite, sentava-se nos bancos da escola até completar a 4.ª classe. O objectivo da escola era, de acordo com a Lei de Bases do Sistema Educativo de 1938, ensinar “a ler, escrever e contar, a compreender os factos mais simples da vida ambiente e a exercer as virtudes morais e cívicas, dentro de um vivo amor a Portugal”. Havia um livro único. E esse livro deixava claro que cada um devia estar contente com o seu lugar. Os ricos deviam ser caridosos e os pobres deviam trabalhar. Se trabalhassem muito, talvez enriquecessem. Se não, paciência. O importante mesmo – sintetiza Helena Pereira de Melo no livro Os Direitos das Mulheres no Estado Novo (2017) – era ser bom católico, bom pai (ou boa mãe), prover o sustento da família.
De dia, Jerónimo ia aprender um ofício. “Rua de São Bento da Vitória, n.º 11, Jardim da Bateria Cromagem Vencedora”. “Fui aprender a cromar, a polir metais, tudo. Eu fazia de tudo. Tenho boas mãozinhas.”
Bem via como a PSP arranjava financiamento para o albergue. Quem tinha dinheiro assegurava algum prestígio ao afirmar-se como protector dos albergues. “Na casa onde eu trabalhava, o patrão já sabia. Ao fim do mês, um polícia fardado ia receber. Havia letreiros na rua que diziam: ‘o Porto pede para os seus pobres. Não recuse o auxílio à Casa dos Pobres.’” E tudo isto lhe parecia, de certo modo, estranho. “Nós éramos proibidos de pedir. Eles podiam pedir.”
Aos 17 anos, perdeu-se de amores por uma rapariga chamada Rosa Rodrigues. Ela morava nas Escadas do Codeçal, um arruamento na freguesia da Sé. “Namorar era à porta de casa, mas a gente tinha as nossas manhas. A minha sogra andava nas feiras a vender. Eu sabia que ao sábado não estava em casa. Comecei a ir lá ao meio-dia. Aproveitei, em vez de ficar à porta, subi as escadas. A Rosita, coitadinha, nem respirou.”
A Rosita ficou logo grávida. Jerónimo lembrou-se do que tinha acontecido à mãe, logo, a si próprio. Não queria que tal acontecesse a Rosita, nem ao filho. “Casei-me. Era a minha obrigação.” Já estava capaz de assegurar o mais básico pilar do sistema de honra de um homem do Estado Novo: garantir a segurança material da família. Saíra do albergue a fazer 18 anos. “Já me defendia. Naquela profissão, era um artista.”
Prostituição proibida
O Estado Novo convidou a mulher a regressar a casa, a concentrar-se na família e na lida doméstica, mas a mulher não tinha de casar-se para ser “honrada”, ainda que o casamento fosse entendido como o passaporte para a “plenitude”, nem de ficar confinada ao lar.
No seio do povo quase não havia domésticas, garantia Maria Lamas no livro As mulheres do meu país (1948). “Todas trabalham mais ou menos fora do lar. Quando não são operárias, são trabalhadoras rurais, vendedeiras, criadas de servir ou ‘mulheres-a-dias’”.
Trabalhar não abalava a reputação de uma mulher. Sair solteira da casa paterna no campo para a grande cidade, sim. Havia que fazer prova da “honestidade do seu viver”. Se não, caía nas bocas do povo. A vizinhança assumia que tinha “caído na má vida”.
Silvina Costa, agora com 63 anos, mudou-se de Boticas, distrito de Vila Real, para o Porto aos nove anos. “Fui servir para uma casa particular. Servia pelo comer, por mais nada. Nem pagavam nem caixa, nem nada. Ia todos os anos ver a minha mãe. Os patrões iam lá passar 8 dias de férias e levavam-me. Iam às termas de Carvalhelhos. Eu era uma garota. Tinha tantas saudades. Éramos dez irmãos. A gente nem pão tinha para comer.”
Aos 12 anos, foi ganhar 100 escudos por mês para casa de outra senhora. Para que dava isso? “Para comprar um par de sapatos e uma peça de roupa por ano, ir à aldeia oito dias, de camioneta, levar alguma coisa para a minha mãe e para os meus irmãos.” Era uma vida de servidão. Os patrões tinham uma confeitaria em Matosinhos. De vez em quando, Silvina ia lá dar uma mão. Um dia, contava 17 anos, conheceu um rapaz, uns bons 11 anos mais velho. “Hoje, pergunto-me o que me agradou nele. Talvez fosse aquela coisa de… eu não tinha apoio, nem carinho.”
Entregou-se. Ele não se quis casar. “Nessa altura, nem se dizia juntar, era amancebar.” E isso não era coisa que se visse com bons olhos numa aldeia devota como a sua. “Ser mulher era muito, muito difícil”, suspira. “Eles é que mandavam em tudo. Uma mulher tinha de se sujeitar.” Tiveram duas filhas. Um dia, ele disse-lhe "até logo", bateu a porta e nunca mais voltou. “Eu fiquei de rastos”, recorda. Uma filha ia nos dois anos e meio e a outra nos seis meses. “Não sabia o que ia fazer à vida. Para mim, aquilo era acabar com a vida e pronto. Tive a coisa de olhar para as minhas filhas. Como gostava muito delas, não fiz asneiras.”
Andava de manhã à noite, de um lado para o outro, a passar-a-ferro e a fazer outros trabalhos domésticos. Arranjou um “amigo”, um homem casado, muitíssimo mais velho, que lhe dava algum dinheiro para pagar as contas. “Ele ia bater à minha casa, mas não entrava. Íamos a uma pensão.” Certa ocasião, a polícia bateu à porta. “Não me levaram porque tiveram pena de mim por eu ter filhas pequenas. Foi a minha salvação. Graças a Deus nunca sujei o cadastro.”
Não fora sempre assim. Desde meados do século XIX, na tentativa de controlar o avanço de doenças venéreas como a sífilis, as mulheres que vendiam sexo tinham de se matricular na polícia e de se sujeitar a inspecções periódicas. Tal prática começara na Polícia Sanitária do Porto (1853) e reproduzira-se, com algumas variações, noutras cidades. Em meados dos anos 40, as clandestinas, ou “prostitutas de escândalo público”, passaram a ser equiparadas aos vadios.
Chamavam-lhes – escreve Alexandra Oliveira no livro Vendedoras de ilusões (2004) – meretrizes, toleradas, mulheres públicas. O Estado Novo via-as como fontes de “impureza”, um “perigo” para a identidade nacional. Além de propagarem doenças venéreas, impeliriam os homens “à devassa” e “ao deboche”, persuadiriam a “mocidade incauta”, ofenderiam as “famílias honradas”.
Não era uma surpresa. A atitude começara a mudar logo na ditadura militar. Um edital do Governo Civil de Lisboa extinguiu as chamadas casas toleradas em 1930. Em vez disso, haveria sítios de permanência provisória, a que se chamavam “quartos mobilados”. Em 1949, o Estado Novo proibiu a atribuição de novas inscrições e a abertura de novas casas toleradas. Em 1963, a prostituição passou a ser completamente proibida – legislação que se manteria até 1982. Nas décadas de 60 e 70, era uma das maiores causas de encarceramento feminino.
Alice Ribeiro, que nasceu há 71 anos em Lisboa, como um rapaz que recebeu o nome de Américo, chegou a ser levada para a esquadra. “Eu nunca fui barbuda. Usava um bocadinho de base. Gostava de ir ao Parque Mayer ao fim-de-semana. Comecei a fazer figuração. Fiz grandes óperas.” Certa ocasião, a polícia tomou-a por prostituto. “Estava com uma saia grande. Foi no tempo da polícia de Estado. Já havia mascarados. Iam para Quinta do Pisão. Morreram lá dois.”
Susana Trovão recolheu memórias violentas sobre a vida no Albergue de Mendicidade de Lisboa, na Mitra, e, sobretudo, na anexa Colónia Agrícola do Pisão, construída em 1956, onde ficavam os homossexuais. Havia até umas “visitas ao pinhal”, que serviam para espancar internados.
As brigadas de trabalho tinham desaparecido em 1952. Os albergues metamorfoseavam-se em instituições para-psiquiátricas. O decreto-lei que em 1976 os transferiu da PSP para o Ministério dos Assuntos Sociais di-lo: “Os actuais albergues de mendicidade, além do acolhimento de emergência, tiveram de manter os albergados por falta de soluções, transformando-se em ‘depósitos’ onde se encontram cerca de 3000 indivíduos, estimando-se em cerca de 70% os pertencentes ao foro psiquiátrico.”
Esta também não era uma originalidade do Estado Novo. No início da Primeira República fora, pela primeira vez, criminalizada a homossexualidade masculina enquanto tal: “será condenado em prisão correccional dum mês a um ano” todo “aquele que se entregar à prática de vícios contra a natureza”. Era uma lei com “claras intenções de especificar quem é quem na sociedade portuguesa”, sintetiza São José Almeida no livro Homossexuais no Estado Novo (2010). Os homossexuais faziam parte do rol de equiparados a vadios. Mas só os das classes mais baixas eram “arrebanhados na rua”, “humilhados nas esquadras e espancados em público, passeados pelas ruas, postos a lavar o chão”, diz, na citada obra, o investigador António Fernando Cascais.
Naquela época, Alice não se percebia como transsexual, não conhecia o conceito, não tinha palavra para isso, nem se imaginava a ganhar a vida a cantar fado na pele de "Chanel". Via-se como um homossexual. “Tinha 11 anos já andava neste martírio”, diz. “Eu ainda nem me vestia de rapariga. Era uma colcha, aquelas colchas chinesas, que eu enrolava no corpo e punha uma corda.”
Não havia de ser tudo mau. À conta daquelas ideias de doença mental, que dominavam o planeta, livrou-se da guerra colonial. “Ia para Angola. Fiz-me muito maricas. Quanto mais fizessem melhor era. Uma vez, à noite, levei um pijama de seda às flores. Eles riam-se. Mandavam-me bocas. Chamavam-me nomes. O brigadeiro foi ver que barulho era aquele. ‘É eles que estão a fazer piadas sobre mim.’.” Esteve dois meses no hospital militar. “Fui à junta médica. Expulsaram-me da tropa. Levei com o artigo 16, que era a homossexualidade.”
O albergue é um lar
Muito mudou o país com o fim da ditadura, derrubada a 25 de Abril de 1974. Onde antes era o Albergue de Mendicidade do Porto, por exemplo, funciona agora o Lar de Monte dos Burgos, gerido pelo Centro Cultural e Desportivo dos Trabalhadores da Segurança Social, herdeiro de um Centro de Alegria no Trabalho.
Carlos Sousa, 71 anos, mora num daqueles edifícios rosados. Escapou-lhe na infância e na juventude, apesar de encarnar a figura do “delinquente de difícil correcção”, o “cadastrado”, que também era equiparado ao vadio.
Nasceu em Lisboa. A mãe, que ganhava a vida a suavizar ardores de homens, deu-o a uma família do Porto. “Esses meus pais tinham uma barraquita. Eu andava a ajudá-los. Aos 13 anos, trabalhei numa fábrica de fogões. Depois, saí e meti-me em andanças”. Certo dia, a polícia apanhou-o. “Tanto rouba o ladrão como o que está à porta, não é? Eu fiquei à porta. Era a ourivesaria Brilhante. O chefe foi preso. Eu preso fui. Andei fugido. Mais tarde botaram-me a mão e quando me botaram a mão respondi.”
Cumpriu pena na Cadeira Civil do Porto, que hoje acolhe o Centro Português de Fotografia. “Daí saí para ir para a tropa. Assentei praça em Espinho. Era um rebelde já. Fugi. Apanharam-me. Respondi. E aí também fui condenado. Mandaram-me para o Forte de Elvas. Depois, mandaram-me para a guerra. Estive na Guiné. Aquilo era porradinha a torto e a direito. Vim de lá um bocado traumatizado. Estive internado. Eu acordava todo suado. Uma faca de mato que eu tinha. ‘Vou matar aquele gajo, vou matá-lo.’ Graça a Deus, estou curado.”
Ficou com a cabeça num oito. Muita coisa sumiu-se na sua memória, como se tivesse ficado esburacada.Tornou-se num mendigo dos tempos modernos. O Estado Social prevê o direito a rendimento social de inserção e a acção social e ele valeu-se disso. “Vivi em muitos lados. A última foi na Rua do Rosário. Tinha aí uma pensãozita. Estive aí 12 anos. Mas aquilo era chunga. Eu parava ali no Parque Itália. Arrumava carros. Andava a limpar uns vidrozinhos.”
Andou naquela vida até ter perdido uma perna. Agora, que está numa cadeira de rodas, passa os dias por ali, debaixo do alpendre, “a conversar com os outros rapazes”. “Conversa daqui, conversa dali, um cigarro, à noite vamos jantar, vamos para a sala da televisão. Quando está na horinha lá vou eu para a cama.”
Tempo de balanço
Jerónimo continua a viver no centro histórico do Porto. Quando os Médicos do Mundo, no âmbito de um projecto de apoio à terceira idade, lhe pediram que escolhesse um dos sítios mais significativos de sempre, apontou a casa onde teve sexo com Rosita pela primeira vez.
Percorremos os lugares com ele, parando aqui e ali a conversar sobre este ou aquele pormenor. Que balanço faz, agora, da sua vida? “Só comecei a pensar na minha vida e no meu futuro quando conheci a minha mulher”, diz. “O que é que eu queria? Queria casar, constituir família, comprar uma casita.”
A família podia ter sido ainda maior do que é. Rosita esteve grávida 11 vezes. Abortou três. Teve quatro meninas e quatro meninos. “Era o excesso de trabalho também.” Trabalhou em restaurantes. A seguir ao 25 de Abril, passou a trabalhar em casa. “Ela tinha uma máquina de costura. Fazia arranjos. Bainhas, apertar calças, tudo. Morria tudo na mão dela.”
A mulher morreu em 2011. Jerónimo ficou só com o neto, que agora trabalha na PSP, em Oeiras. “Tinha muitas fotografias dela espalhadas pela casa e escondeu algumas para não se deprimir com o tamanho da saudade. “Dei sempre valor à Rosita. Sabia a mulher que tinha.” Não lhe passaria pela cabeça fazer dela mãe solteira. “Há o amar e há o desejar. Eu amava e desejava a Rosita.”
A vida melhorou depois do 25 de Abril? “Melhorou na expressão de poder falar à vontade. No tempo do Salazar havia muita repressão e muita miséria.” Nem havia chuveiro na primeira casa em que viveu com Rosita. “Era uma miséria social. Mas eu era feliz naquele tempo. Era feliz porque era novo e tinha a minha Rosita."