Sobre as vacinas e a pseudociência
Quanto à causa da não vacinação, “meter tudo no mesmo saco” não ajudará a resolver esta séria ameaça à saúde pública e à dignidade dos cidadãos.
Nos últimos dias, Portugal tem estado em verdadeiro sobressalto com o problema da vacinação. Ora, a relevância da vacinação deve assentar em dois pilares: a evidência científica e a saúde pública. A evidência científica sobre um vasto grupo de patologias é muito consistente e os estudos epidemiológicos mostram, de forma inequívoca, a sua elevada relevância na saúde das populações. Assim, na minha opinião, legislar sobre a obrigação de cumprir um Plano Nacional de Vacinação (necessidade legislativa sobre a qual sou favorável) deve decorrer destes dois pilares e não de quaisquer movimentos ideológicos.
Da panóplia de artigos de opinião que li nos últimos dias, retive o do bioquímico David Marçal, intitulado “Terapias alternativas, sarampo convencional”. O autor tenta estabelecer uma relação do tipo “causa-efeito” entre uma certa atitude “anti vacinação” e a progressão social e legislativa das Terapêuticas Não Convencionais, qualificando essa mesma legislação como “delirante” e “alucinogénia”. Antes de mais, por uma questão de rigor concetual, a legislação, seja ela qual for, não pode ter nem atributos psicopatológicos (delirante) nem, tanto quanto se sabe, qualidades indutoras de psicopatologia (alucinogénia); só os autores dessa legislação podem ser alvo destes qualificativos. Portanto, em nome do rigor concetual, fica o apelo à necessidade de se chamar “os bois” pelos nomes. Quanto à putativa relação “causa-efeito” a que acima aludi, temo que se pode estar a confundir a Obra-Prima do Mestre com a Prima do Mestre d’Obra.
Vejamos: aquilo a que se chama Terapêuticas Não Convencionais constitui um conjunto diversificado de saberes e de saberes-fazer que, para além de estarem em diferentes estádios de desenvolvimento epistemológico e tecnológico, estão em vias de integração em diversos dispositivos científicos e legais, com estratégias sustentadas, como são exemplos as iniciativas da Organização Mundial da Saúde e da Comissão Europeia.
Vejamos, também: conselhos anti vacinação têm sido dados, quer pela medicina convencional, quer pela medicina não convencional (lembremo-nos dos estudos fraudulentos de Andrew Wakefield e colaboradores, que forjaram o estabelecimento de uma relação entre a administração da vacina tríplice e o autismo, com publicação no irrepreensível periódico The Lancet, e que tiveram, como está documentado, um impacto devastador nos últimos 18 anos, na questão em apreço, mesmo em populações qualificadas e diferenciadas socio-educativamente).
Vejamos, ainda: existem muitos movimentos de natureza sociocultural, não ligados à área da Saúde, que seguem “filosofias de vida” onde a vacinação, infelizmente, é representada pejorativamente. Vejamos, finalmente: uma grande parte da população mundial não cumpre a vacinação por causa da pobreza, i.e., porque não tem dinheiro sequer para se alimentar e/ou porque as regiões onde habitam não têm meios para a administração de saúde preventiva, como bem demonstram os relatórios da OCDE.
Portanto, quanto à causa da não vacinação, “meter tudo no mesmo saco”, atribuir causalidades lineares, sermos ignorantes ou falaciosos, muitas vezes em nome da Ciência, não ajudará a resolver esta séria ameaça à saúde pública e à dignidade dos cidadãos.
Se é certo que se entende a necessidade de formalizar a obrigatoriedade do cumprimento do Plano Nacional de Vacinação, também é certo que devemos “tomar cautelas e caldos de galinha” quando “opinamos cientificamente” sobre estas matérias!
O autor escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico