O fim da V República
No próximo domingo, os eleitores franceses vão votar sob o signo da violência imposta pelos atentados terroristas do Estado Islâmico.
A ética republicana exige como resposta uma participação maciça, a única forma de anular a ameaça terrorista contra a democracia pluralista, e a diminuição dos níveis de abstenção previstos pelas sondagens disponíveis pode alterar a balança entre os três ou quatro candidatos com condições para passar à segunda volta da eleição presidencial. Nesse contexto, pode ainda existir uma possibilidade de impedir, ou adiar o fim da V República, que parece inevitável se os dois candidatos escolhidos forem, como tudo indica, Emmanuel Macron e Marine Le Pen, para nem mencionar o cenário catastrófico em que os franceses seriam confrontados com uma escolha impossivel entre Marine Le Pen e Jean-Luc Mélenchon.
Bem entendido, Macron e Le Pen representam pólos opostos. O primeiro quer reformar a democracia francesa para restaurar a grandeza da França na primeira linha da integração europeia e ocidental e a sua eleição pode significar uma viragem na própria crise europeia — um primeiro sinal positivo depois do "Brexit" e da eleição presidencial norte-americana. A segunda quer destruir a república francesa, iniciar uma deriva racista e autoritária para perseguir as minorias islâmicas em nome da luta contra as redes terroristas e os perigos da imigração e defende uma linha nacionalista e soberanista anti-alemã que visa retirar a França da União Europeia para, desse modo, completar o "Brexit" e destruir a ordem das democracias europeias.
Não obstante, ambos anunciam o fim da V República ou, em todo o caso, uma transformação radical das referências políticas e institucionais que definem a especificidade do regime inaugurado depois do regresso do general de Gaulle aux affaires, há sessenta anos.
O argumento é óbvio no caso de Marine Le Pen, cuja família política se situa na tradição do partido colonialista francês na guerra da Argélia — que Macron quis explicitamente denunciar durante a sua campanha. A Frente Nacional não é reconhecida como parte do arco republicano, nem como uma formação que respeite os valores da democracia pluralista: a sua rejeição da integração europeia confirma uma linha nacionalista reaccionária, a sua oposição à emigração é feita em nome do racismo, as suas politicas securitárias escondem mal um velho ressentimento colonial anti-islâmico. Os seus valores são a negação do ethos republicano e a sua eleição seria o fim da V República.
O argumento é igualmente óbvio no caso de Emmanuel Macron, que não tem uma família política — como o "Grand Charles", não é de esquerda, nem de direita, só se reconhece nos valores que unem a comunidade nacional. É evidente que Macron é um exemplo dos valores republicanos e liberais e um europeísta na melhor tradição francesa, mas o facto de não ter um partido político representa uma mudança política e institucional radical. Com efeito, todos os Presidentes da V República foram chefes de um partido e chefes da maioria parlamentar e é só nessas condições que o regime presidencialista francês pode funcionar: a última reforma política da V República, que prevê a eleição sucessiva do Presidente da República e da Assembleia Nacional, confirma essa interpretação do regime gaullista. Nesse sentido, se Macron for eleito, sem comandar um partido e sem uma maioria parlamentar, será um Presidente da República que só pode exercer um poder moderador: não é esse o estatuto do Presidente da V República, chefe do executivo, chefe dos exércitos e decisor nuclear. Com Macron, ironicamente, a V República terminaria como começou, com um homem bom, sozinho diante da nação. Mas, como o general de Gaulle, para prevalecer Macron tem de refundar o regime republicano.
Alexis de Tocqueville explicou que a nação francesa era "a mais brilhante e a mais perigosa das nações europeias e a mais bem feita para se tornar, à vez, objecto de admiração, de ódio, de piedade e de terror, mas nunca de indiferença". As próximas eleições confirmam que a sua máxima continua a ser verdadeira.
Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI-UNL)