MOAB, uma “mão de Deus”? Uma sigla com muito peso
O uso da simbologia deve ser ponderado e deve resistir à tentação do significado fácil.
Nos últimos dias, uma palavra entrou pelos nossos ouvidos significando aquela que é chamada pelos seus criadores como a “mãe de todas as bombas”. Numa visão tão forte de si mesmos como criadores de morte e de destruição, a sigla pela qual é conhecida esta bomba não podia ser isenta de significado, não podia ser apenas o alinhar de um grupo de letras que, por acaso, resultara na expressão MOAB – Massive Ordnance Air Blast.
De facto, MOAB é das palavras bíblicas com mais significado. E o seu uso pressupõe, obviamente, o conhecimento do que ela implica, das tonalidades do seu significado, da profundidade de uma postura e de uma ideologia que pode ser indicada através dessa opção. O acaso é a última dimensão a ter em conta perante os usos desta palavra.
No campo mais simples de significado, Moab é o nome de uma faixa de terra montanhosa hoje em dia parte da Jordânia. Na Antiguidade, esta faixa pertencia ao chamado Reino Moabita, um reino vizinho de Israel, um inimigo de peso no domínio regional.
Este pequeno reino, tal como o era Israel, que surge referido várias vezes na Bíblia (II Reis 3, e Gn 19, 37), tem atestada a sua existência através da arqueologia. Contudo, antes de se olhar brevemente para o que o texto bíblico nos diz deste reino, vejamos a própria palavra.
Como para muitos outros topónimos antigos, a sua etimologia é incerta. Contudo, as várias hipóteses apontadas pelos investigadores merecem o nosso olhar. Uma das mais interessantes, remete o pensamento para um particípio, logo, Moab seria "a desejável [terra]".
Mais perto de nós, Rashi, um importante pensador judaico medieval, do séc. XI, aponta uma alternativa que nos obriga a seguir outra interpretação. Para este pensador, Moab seria, originalmente “Mo’ab”, sendo que “ab” é a palavra semita mais comum para “pai”. Assim, Moab seria "do Pai". Com esta leitura, Rashi justificava, devido à soberba do uso de tal nome, a forma como Israel tratara os moabitas na guerra descrita no livro II Reis.
Ainda mais perto de nós, o orientalista alemão Fritz Hommel (1854-1936) avançava com a possibilidade de Moab ser uma abreviação/contracção de "Immo-ab", podendo-se interpretar essa nova versão como a "sua mão é seu Pai".
Nestas duas leituras, a dita bomba ganha um poder quase divino e ordenador. Se, ironicamente, Moab pode ser “a desejável”, ficando-se sem saber se o desejo é em relação à terra onde ela vai cair ou se a sua queda e destruição é desejo de quem a lança, por outro lado, seguindo o comentarista medieval, Moab é sinónimo de injúria perante Deus, e por isso é vingança justa e merecida. No limite, seguindo as leituras mais recentes, o uso de uma bomba com este nome está como que legitimado por Deus por ser uma arma em que "sua mão é seu Pai", numa legitimidade teológica plena.
Estamos, mais que perante um nome radicado numa leitura judaica, num uso que parece ser mais típico dos grupos e igrejas neopentecostais que em muito usam na sua pregação as imagens do Deus de Israel como o Deus dos Exércitos, o Deus vingador.
O irónico é que, realmente, o reino do Moab surge quer na Bíblia, quer nos vestígios arqueológicos. E se, na Bíblia, Israel vence de forma inquestionável, na famosa Estela de Mesa, onde se encontra a versão moabita dessa mesma guerra, a situação é muito diferente….
No texto bíblico (2 Reis 3, 4-27):
Então Mesa, rei dos moabitas, era criador de gado, e pagava de tributo, ao rei de Israel, cem mil cordeiros, e cem mil carneiros com a sua lã.
Sucedeu, porém, que, morrendo Acabe, o rei dos moabitas se rebelou contra o rei de Israel.
[…]
também entregará ele [Deus] os moabitas nas vossas mãos.
E ferireis a todas as cidades fortes, e a todas as cidades escolhidas, e todas as boas árvores cortareis, e entupireis todas as fontes de água, e danificareis com pedras todos os bons campos.
[…]
E arrasaram as cidades, e cada um lançou a sua pedra em todos os bons campos, e os entulharam, e entupiram todas as fontes de água, e cortaram todas as boas árvores […].
Na Estela de Mesa (c. 830 a.C.), hoje no Museu do Louvre:
No que toca a Omri, Rei de Israel, este humilhou Moabe durante muito tempo, porque Quemós [deus de Moab] estava irritado com sua terra. E o seu filho seguiu-o e disse também: Hei-de humilhar Moabe. No meu tempo [do rei Mesa] ele o disse, mas eu triunfei sobre ele e a sua casa, enquanto Israel tinha perecido para sempre! Omri tinha ocupado a terra de Mádaba e Israel tinha habitado lá no seu tempo e durante metade do tempo do seu filho [Acabe, filho de Omri], por 40 anos; mas Quemós habitou ali, no meu tempo.
Como se vê, o uso do significado de MOAB deveria implicar um mais correcto conhecimento, ou a administração Trump corre o risco de estar a criar uma nova guerra assente em “factos alternativos”, como no caso do texto bíblico, mais recente que a Estela de Mesa… É por isto que o uso da simbologia deve ser ponderado e deve resistir à tentação do significado fácil.