O colinho da Mãe
A Mãe de Todas as Bombas conforta e consola Trump, fá-lo acreditar que não está perdido, dá-lhe a ilusão do controlo.
Com a sua presidência num caos permanente, Trump não poderia procurar outro refúgio senão o colinho da Mãe. No seu caso, não a mãe do ventre que o criou, mas o colo que lhe dá a Mãe de Todas as Bombas, aquela que traz no ventre oito quilómetros de destruição em torno do ponto do planeta em que for largada. Para Trump é mais ou menos a mesma coisa. A Mãe de Todas as Bombas conforta-o e consola-o, fá-lo acreditar que não está perdido, dá-lhe a ilusão do controlo. De cada vez que está frustrado com Washington, Trump descarrega uma carga de explosivos, algures bem longe, para parecer presidencial. Em cerca de uma semana, bombardeou a Síria sem consultar a ONU, enviou uma parte da sua frota de guerra para a Coreia do Norte e lançou a Mãe de Todas as Bombas sobre o Afeganistão. Como será daqui para a frente?
Trump sempre teve qualquer coisa de bebé chorão na sua puerilidade agressiva. Mas não é o único a recolher-se na segurança das suas certezas. O regresso à infância é uma parte importante do ensimesmamento nacionalista por que estamos a passar. No fundo, todos sabemos que o mundo não volta para trás. Mas há quem acredite que uma boa birra ajuda a evitar o desconforto. Infelizmente temos um desses casos na Casa Branca.
Temos outro na Turquia. Chama-se Recep Tayyip Erdogan. Depois de ter sido primeiro-ministro muitos anos decidiu que queria ser Presidente. Depois de ser Presidente decidiu que queria ter poderes de primeiro-ministro. E agora decidiu que queria ter os poderes do parlamento também, e já agora os dos tribunais porque sim. É um bebé-sultão que berra e esperneia e que ontem teve o presente que exigiu: uma constituição novinha em folha que o deixar nomear juízes sozinho, abolir o cargo de primeiro-ministro, criar vice-presidentes que não respondem perante o parlamento e até candidatar-se a mandatos suplementares (para além dos dois habituais) casos haja uma conveniente eleição legislativa antes do fim do segundo mandato. Erdogan ganhou a sua constituição-à-medida num referendo que teve de tudo: líderes de partidos de oposição na cadeia, jornais fechados ou com direções substituídas, centenas de jornalistas e intelectuais presos e as televisões na mão fazendo campanha pelo “Sim”. E mesmo assim a vitória foi curta. O “Sim” teve 51,5% contra 48,5% do “Não”, com suspeitas de manipulação de votos, e derrotas para Erdogan nas três maiores cidades: Istambul, Ankara e Izmir.
Há anos que o meu cenário de pesadelo é este: e se a Turquia implodir? Ontem demos mais um passo nesse sentido. Num país partido ao meio, a coexistência de uma sociedade plural, secular e urbana com a deriva autocrática de Erdogan e a guerra civil no sudeste curdo é simplesmente insustentável. Se há na Europa quem ache que é impossível lidar com a vaga de refugiados causada pela implosão da Síria, imagine-se o que será se um dia a crise vier da muito maior Turquia e não houver nenhum país de permeio a quem comprar a conivência com a violação do direito internacional de proteção de refugiados?
E já que estamos nisto, que é feito da Europa? A Europa também tem o colinho da sua mãe. No caso europeu, o colinho que buscamos é o das nossas próprias inseguranças, acompanhado em alguns casos por uma dependência psicológica em relação aos EUA. Já é bem chegada a hora de crescermos e olharmos para o que se está a passar. Trump enterrou o consenso euro-atlântico durante a visita de Merkel a Washington — e nem precisou de um aperto de mão. Os chefes de Estado e Governo que afirmam “compreender” o ataque de Trump à Síria não só alinham numa desvalorização da ONU como pensam de alguma forma poder recuperar o mundo em que os EUA eram uma super-potência de que eles poderiam depender.
Esse tempo não volta. A União Europeia, se olhada no seu conjunto, tem mais do que recursos para cuidar de si. Mesmo depois do "Brexit", é a primeira ou segunda economia mundial, o terceiro maior conjunto populacional, o maior mercado, a segunda maior força militar, o maior potencial diplomático em termos de “poder suave”, e uma potência científica, académica e cultural invejável. Por isso atrai milhões de refugiados e imigrantes, de que deveria orgulhar-se e os quais deveria acolher da melhor maneira. Se a UE não quiser olhar para si mesma no seu conjunto e projetar a partir daí o seu futuro, então a Europa não é nada disto. Mas poderá sempre chorar desconsolada as suas inseguranças, num mundo em que ninguém a virá salvar se a Europa não quiser salvar-se a si mesma.