Vazio legal livra arguidos no caso da Legionella de acusação por crime de poluição

Caso do surto de Legionella de 2014, em Vila Franca de Xira, tem nove arguidos. Estão acusados do crime de infracção às regras de construção e ofensas à integridade física. Mas não do crime de poluição.

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Contaminação teve origem numa torres de refrigeração da unidade da ADP Fertilizantes MIguel Manso

A primeira possibilidade explorada no inquérito do caso do surto de Legionella de Vila Franca de Xira que, em Novembro de 2014, originou 14 vítimas mortais, apontava para a eventual prática de um “crime de poluição com perigo comum”. Mas o Ministério Público (MP) foi obrigado a “deixar cair” esta possibilidade, porque a legislação portuguesa é praticamente omissa nas questões ligadas à chamada “doença do legionário”, ao contrário da vizinha Espanha, que já tem legislação específica sobre a Legionella desde 2003.

O problema já tinha sido abordado pelo relatório final da Polícia Judiciária (PJ) ao caso. E em Março último a acusão do MP arquivou mesmo esse crime. Ninguém será acusado de “poluição com perigo comum” porque, justifica-se, não existe no ordenamento jurídico português qualquer disposição, regulamento ou obrigação que preveja especificamente qual o limite máximo admissível de presença de bactérias da Legionella, e a partir de que momento elas constituem um potencial agente de poluição.

Como a prática do crime implica o desrespeito ou a desobediência a disposições legais, a procuradora Helena Leitão, responsável pela investigação do surto que infectou mais de 400 pessoas, concluiu que não pode ser imputada aos nove arguidos acusados a prática do “crime de poluição com perigo comum”, punível com pena de três a 12 anos de prisão.

O ministro do Ambiente, confrontado no final do ano passado, na Assembleia da República, com esta eventual omissão legal, admitiu rever a legislação, mas disse desconhecer o relatório da PJ. Afirmou ainda que aguardaria pela posição do MP.

Agora, questionado pelo PÚBLICO, o gabinete do ministro Matos Fernandes adiantou apenas que, tendo tomado conhecimento do despacho do MP, o Ministério do Ambiente está a desenvolver um processo de reflexão sobre o assunto. “É um trabalho que está em curso e que não deu ainda frutos visíveis, mas o ministério continua a reflectir sobre o assunto, tendo em consideração aquela decisão judicial”, refere um porta-voz do gabinete de Matos Fernandes. 

Segundo o despacho da procuradora Helena Leitão, seguindo o princípio da precaução e da salvaguarda da saúde pública, a vizinha Espanha, dispõe, já desde 2003, de um diploma específico para a Legionella. E vários outros países produziram legislação semelhante.

A lei espanhola

O Real Decreto 865/2003, em Espanha, enumera as instalações mais susceptíveis de desenvolverem focos de Legionella e os procedimentos obrigatórios de limpeza e manutenção. Aponta ainda as infracções graves (puníveis com multas de 2500 a 500 mil euros) e muito graves, que podem ser punidas com multas de 500 mil a 20 milhões de euros. E acrescenta que o Governo e as comunidades autonómas podem, ainda, decidir aplicar penas acessórias de encerramento das instalações em causa até um prazo máximo de cinco anos.

Acrescenta a magistrada do MP de Vila Franca de Xira que, para além dos documentos sobre as MTD (melhores técnicas disponíveis) próprias da actividade industrial, em 2014 havia na legislação portuguesa uma única referência à Legionella decorrente da transposição da Directiva 96/61/EC da União Europeia. Mas, mesmo aqui, as referências aos “riscos microbiológicos nos sistemas de arrefecimento industrial” não apontam valores-limite de presença de bactérias da Legionella que tenham que ser observados.

Neste contexto, os nove arguidos do surto de Vila Franca de Xira (duas sociedades e sete indivíduos) foram acusados da prática do crime de infracção às regras de construção, dano em instalações e perturbação de serviços e ofensas à integridade física por negligência. O eventual crime de poluição foi arquivado.
Omissão “muito grave”

Para Nuno Sequeira, membro da direcção da Quercus, esta “omissão” no quadro legislativo português é “muito grave” e “não deveriam acontecer” casos em que, por questões legislativas, a justiça não possa levar a prática de eventuais crimes “até às últimas consequências”.

O dirigente ambientalista não consegue identificar as razões desta omissão, mas sabe que há mais situações do género. “Não se percebe por que é que existe esta omissão, pode ter sido por incompetência, por ignorância, mas também pode ter sido por algo mais”, refere, considerando que, em Portugal, acontecem muitas vezes casos de leis sem regulamentação que “levantam muitas dúvidas”.

“Não coloco em causa a decisão que foi tomada pela senhora procuradora, porque terá feito o que lhe competia. Mas para nós é decepcionante se um caso com esta gravidade não puder ser levado às últimas consequências. O Governo deve, o mais rapidamente possível, trabalhar na correcção desta situação, porque, infelizmente, os casos de Legionella continuam a acontecer”, sublinha Nuno Sequeira, considerando que, dois anos e meio depois de um surto de Legionella com a gravidade do de Vila Franca de Xira, o Estado português já deveria ter tomado outras atitudes.

“Não percebo do que é que o Governo está à espera. Evidentemente tivemos eleições legislativas pelo meio, mas este Governo já tem mais de um ano de mandato. Está na altura de dar respostas. A sociedade exige que alguma coisa seja feita. Situações como esta não são admissíveis num Estado de direito, que deve garantir aos cidadãos um ambiente saudável”, acrescenta.

Já Jorge Moreira da Silva, titular da pasta do Ambiente no governo de Passos Coelho quando o correu o surto de Vila Franca de Xira, disse, ao PÚBLICO, que não pretende alongar-se em comentários enquanto o caso estiver na alçada da justiça. “Reafirmo o que sempre disse, não existe qualquer omissão legal. As condições impostas na licença ambiental das empresas e a legislação portuguesa e europeia estabelecem, sem margem para dúvida, obrigações de manutenção e controlo das instalações de forma a impedir a presença da Legionella”, sustenta o antigo ministro, realçando o bom trabalho feito pelas estruturas da Saúde e do Ambiente na localização da fonte do surto. “Mantenho a firme convicção de que a culpa não morrerá solteira.”

Mais fiscalização

Também a Associação de Apoio às Vítimas da Legionella de Vila Franca de Xira (AAVLVFX) defende que é urgente alterar a legislação portuguesa nesta matéria, para evitar a repetição de casos semelhantes. Joaquim Ramos, presidente da AAVLVFX, disse  ao PÚBLICO que a associação tem mantido contactos nesse sentido com alguns grupos parlamentares.

Os autarcas de Vila Franca de Xira têm preocupação semelhante. Alberto Mesquita, presidente da câmara, promete pedir audiências na Assembleia da República para sensibilizar os deputados para a necessidade de rever a legislação e de reforçar as exigências de fiscalização e de vigilância em tudo o que diga respeito à Legionella. “Há questões legislativas que já deviam ter sido alteradas. Já falámos com a direcção da Associação de Apoio às Vítimas e uma das iniciativas que vamos tomar é pedir uma audiência conjunta na Assembleia da República, reclamando que se verifiquem as alterações necessárias, porque as alterações feitas em 2013 não foram amigas do ambiente, porque houve um aligeiramento das exigências de manutenção das torres de arrefecimento. Acho que a legislação deve ser revista e que estas questões devem ser regulamentadas. Não é uma ideia contra as empresas, mas é preciso haver regras para que estas coisas não aconteçam”, sustenta o eleito do PS.

Jorge Costa, deputado do BE, questionou, em Fevereiro, o ministro do Ambiente sobre a revisão do Decreto-Lei n.º 118/2013, de forma a “reintroduzir normas de fiscalização e de prevenção do risco de surtos de Legionella”. Recorda o parlamentar do BE que, em Março de 2016, foi aprovada, na Assembleia da República, uma resolução que “recomenda a reintrodução da fiscalização da qualidade do ar interior, com a correspondente pesquisa da presença de colónias de Legionella, tal como previsto no Decreto-Lei n.º 79/2006”.

Segundo Jorge Costa, a legislação de 2013 eliminou as auditorias obrigatórias à qualidade do ar interior previstas na legislação de 2006. Já depois da aprovação da resolução, o Decreto-Lei n.º 118/2013 foi alterado (Junho de 2016), mas “não foram ainda reintroduzidas as normas que constavam no decreto de 2006 no que se refere à fiscalização e prevenção de surtos de Legionella”, constata o deputado, que considera que esta alteração legislativa é “bastante simples” e quer saber quando é que o Governo pretende concretizá-la.   

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