No Algarve, as alterações climáticas não travam o betão à beira-mar implantado
A história de 25 anos de alterações no ambiente em Portugal, contada por Luísa Schmidt, é um retrato cinzento, feito de “erros, mentiras e conquistas”, em que as alterações climáticas passam ao lado dos interesses imobiliários.
O que mudou, nas últimas décadas, na forma como olhamos e sentimos o ambiente nas suas diversas dimensões? Uma resposta possível surge retratada em Portugal: Ambientes de Mudança, um livro de Luísa Schmidt, investigadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, em que o Algarve ocupa lugar de destaque. Nesta região, as alterações climáticas, por exemplo, não beliscaram os chamados “projectos de potencial interesse nacional” (PIN), pendurados nas arribas e, nalguns casos, à mercê da fúria do mar.
A pretexto da apresentação do livro em Tavira, Luísa Schmidt, também coordenadora do Observa — Observatório de Ambiente, Território e Sociedade, participou num debate no qual se falou de alterações climáticas, orla costeira, incêndios e, inevitavelmente, da exploração de hidrocarbonetos . O encontro, realizado na Biblioteca Álvaro de Campos, serviu, aliás, e mais uma vez, para dizer não à instalação da indústria petrolífera na região.
“Não há qualquer compatibilidade entre a estrutura e actividade da região [turismo], dos seus valores ambientais e paisagísticos e de identidade e a instalação de explorações de hidrocarbonetos”, afirma a autora, nesta obra, com 433 páginas, em que reuniu os seus textos publicados no Expresso. “PetrAlgarve, uma nova região?” — pergunta a socióloga no capítulo dedicado às energias, denunciando o “pára-arranca” dos sucessivos governos, no que diz respeito à falta de determinação para levar a cabo uma verdadeira política das energia renováveis.
No intervalo entre as palavras e os actos políticos ficam os resíduos das “pegadas” de um poder autárquico com interesses difusos. A Câmara de Tavira aprovou, em Setembro, uma proposta para promover e preservar as “paisagens mediterrânicas”, procurando com esse gesto potenciar a distinção atribuída pela UNESCO à dieta mediterrânica, que passou a ser património imaterial da humanidade. O resultado prático foi nulo. A sul da Via do Infante continua a alastrarse o “mar de plástico” das estufas, instaladas no perímetro de rega do Sotavento algarvio. Assim, o antigo mosaico de culturas mediterrânicas está a dar lugar às explorações de produção intensiva de frutos vermelhos e outras espécies de crescimento rápido.
A questão mais polémica foi a aprovação, por parte do Parque Natural da Ria Formosa, de uma exploração de 14,8 hectares de framboesas, numa zona classificada como faixa de protecção do sistema lagunar. A propriedade — Quinta da Torre d’Aires, com 43 hectares — integra-se ainda na zona especial de protecção da antiga cidade romana de Balsa. Por interferência da Direcção Regional da Cultura os trabalhos foram embargados e o investimento, de uma empresa espanhola, está, por enquanto, suspenso. Defender o ambiente, diz Luísa Schmidt, “tornou-se uma cruzada tão universal que as mais poluídas consciências se apresentam a proclamar às nações: ‘Sim senhor, nós estamos pelo ambiente.’”
Quanto ao ordenamento do território, ressaltam as tempestades que “brutalizaram” a vulnerável zona costeira portuguesa, entre Janeiro e Fevereiro de 2014. Porém, os estragos e os alertas dos especialistas não travaram os processos de construção em curso. De resto, vincou a autora, segundo um relatório publicado em Agosto de 2006, pela Agência Europeia do Ambiente, entre 1990 e 2000 Portugal foi o país onde se deu a mais rápida ocupação do litoral, com um aumento de 34% de áreas artificializadas.
Os planos directores municipais continuam a abrir possibilidades de urbanizar áreas de elevado risco. “Relembrem-se, entre outros, o escandaloso caso da lagoa dos Salgados, no Algarve; as pretensões na praia da Falésia; ou a incrível urbanização nas arribas da praia da Pedra do Ouro, em Alcobaça, ou da mata do Urso, acima de Pedrógão”, estes casos a norte de Lisboa, exemplificou, provando que os problemas não se cingem à costa algarvia.
Um relatório recente da Agência Europeia do Ambiente, insiste a investigadora, “dramatiza” os fenómenos relacionados com a seca e a erosão costeira. Em declarações ao PÚBLICO, Luísa Schmidt sublinha: “As alterações climáticas estão a dar-se a um ritmo mais rápido do que os cenários que eram traçados.” A região do Algarve continua a ser um “reino” onde floresceram os projectos imobiliários, situados em zonas de risco. Esses investimentos de interesse dito “nacional”, enfatiza, ficaram “encavalitados até mesmo no domínio público marítimo, que fora desde sempre um amortecedor de segurança da costa portuguesa”.
Pelo lado positivo, Luísa Schmidt destaca a Estratégia Nacional de Adaptação às Alterações Climáticas e a rede Climadapt, na qual participam 26 autarquias. Esta rede nacional é liderada por Loulé, um dos concelhos mais turísticos da região. Neste concelho, o resort de Vale do Lobo é uma das zonas mais fustigadas pelo avanço do mar, com casas à beira do precipício.