Cenas da luta de classes pelo humanista Mizoguchi

Uma temporada - novo ciclo da Leopardo Filmes - para descobrir, ou redescobrir, um dos mestres absolutos da 7ª arte, um cineasta humanista e profundamente sensível que soube tocar na ferida das regras rígidas da sociedade japonesa.

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Os Amantes Crucificados
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Contos da Lua Vaga
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A Mulher de Quem se Fala
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A Mulher de Quem se Fala

É possível falar de Kenji Mizoguchi (1898-1956) sem repetir os lugares-comuns sobre “o misterioso e fascinante mundo do cinema clássico japonês”, ainda e sempre insuficientemente conhecido. Já ultrapassámos há muito essa dimensão exótica quando falamos de Yasujiro Ozu, Akira Kurosawa, Mikio Naruse ou Nagisa Oshima. Mas se, por exemplo, Richard Brody, o sempre estimulante crítico da revista The New Yorker, considera Mizoguchi o maior dos nipónicos do século XX, superior até a Ozu e Kurosawa, o seu reconhecimento parece estar mais do lado dos cinéfilos e estudiosos que do grande públco – e é por isso que é importante explicar o privilégio raro que é ver a obra de um dos mais importantes cineastas do século XX no circuito comercial, num novo ciclo da Leopardo Filmes que sucede aos êxitos obtidos com Ozu, Bergman, Tarkovski ou Rossellini.

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É verdade que os nove títulos que vamos agora ver em sala em Lisboa (Nimas) e no Porto (Campo Alegre) – Contos da Lua Vaga (1953), A Mulher de Quem se Fala (1954) e Os Amantes Crucificados (1955) numa primeira “leva” que arranca esta quinta-feira, 13; O Conto dos Crisântemos Tardios (1939), A Senhora Oyu (1951), Festa em Gion (1953), O Intendente Sansho (1954), A Imperatriz Yang Kwei Fei (1955, o único destes filmes rodado a cores) e Rua da Vergonha (1956) a partir de 11 de Maio – correspondem (com a excepção dos Crisântemos Tardios) ao período mais estudado da carreira do realizador: os filmes de fim de carreira feitos para os estúdios Daiei na década de 1950. Entre eles, os dois títulos que mais identificamos com o nome de Mizoguchi: Contos da Lua Vaga e O Intendente Sansho, ambos premiados no festival de Veneza.

A escolha pode ser razoavelmente consensual, mesmo convencional, mas corresponde também à evidência prática: Mizoguchi, cineasta extremamente prolífico que assinou cerca de 75 filmes, iniciou carreira no tempo do mudo (a primeira realização é de 1923), mas a quase totalidade dos filmes desse período são considerados perdidos. Foi essencialmente a sua produção sonora – três dezenas de longas-metragens – que sobreviveu; e o grande momento de descoberta ocidental do cinema japonês, na década de 1950, coincidiu, tragicamente, com a sua morte em 1956, aos 58 anos, de leucemia. O conhecimento da obra de Mizoguchi será, por isso, sempre parcelar – mas o que sobreviveu mais do que chega e sobra para justificar a sua redescoberta permanente, ainda por cima quando a progressiva penetração do cinema asiático nos permite compreender de outro modo a inspiração do cineasta nas tradições artísticas nipónicas e o modo como utiliza o Japão feudal para falar do presente. E, tal como Yasujiro Ozu nos arrebatou em 2013, os filmes de Mizoguchi revelam uma modernidade espantosa quando justapostos ao nosso mundo contemporâneo.

Num momento em que a desigualdade, económica ou de género, está constantemente nas primeiras páginas dos jornais, eis um cineasta clássico, dos mais aclamados da história da 7ª Arte, rodando numa sociedade patriarcal e rigidamente estruturada e com um conhecimento preciso do teatro japonês noh e kabuki, que tomou como uma das suas bandeiras recorrente o estatuto da mulher e a luta de classes. É uma dimensão que pode ser atribuída à própria vivência de Mizoguchi, cuja família caíu ela própria em desgraça, cuja irmã se viu forçada a tornar-se gueixa.

Pegue-se numa das obras-primas que vamos ver agora, Os Amantes Crucificados: um delicado e devastador melodrama na Quioto do século XVII sobre um romance que desabrocha pelo meio de uma série de mal-entendidos, cujo ponto de partida, à imagem da mais clássica das construções do teatro grego, tanto poderia dar uma comédia como uma tragédia. Embora antecipemos que dificilmente as coisas acabarão bem, existe na paciente disposição de personagens e situações com que tudo começa uma “neutralidade” requintadamente colocada, que descambará, rapidamente, para o lado da tragédia.

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O Grande Impressor Ishun, proprietário sovina de uma impressora, vive à fartazana mas recusa-se a emprestar dinheiro aos endividados familiares da esposa, Osan, oriunda de uma família nobre que caiu na vida e que humilha constantemente. Esta relação puramente de convieniência traz ao de cima a injustiça e a desigualdade de um sistema corrupto, consolidada num encadeamento precisamente gerido de situações que levam Osan e Mohei, o artesão modesto e voluntarioso que apenas quer ajudar a mulher do patrão, a serem tomados por amantes. Os dois serão transformados em “bodes expiatórios” de uma sociedade onde o dever parece tudo comandar – quer seja no Japão feudal onde muito do cinema de Mizoguchi decorre, quer seja no Japão contemporâneo que filma em A Mulher de Quem se Fala e Rua da Vergonha.

Mohei e Osan são exemplares do fio condutor destes três primeiros títulos : a vontade de corrigir as injustiças de uma sociedade rigidamente estruturada, a busca de uma vida melhor e mais equilibrada para todos. Esse desejo é, ao mesmo tempo, perdição e redenção das suas personagens: basta ver como é a ambição do estatuto que perde Genjuro e Tobei, os dois irmãos oleiros rurais de Contos da Lua Vaga, que sonham em possibilitar à família o desafogo que só a subida de estatuto social e financeiro permite. Em vez disso, encontram (literalmente) meros fantasmas, ilusões sedutoras e transientes, como a dama Wakasa, que acabam por separá-los das esposas e condenar a família à desgraça. Mas é importante sublinhar que não estamos, nunca, na presença de cinema abertamente político ou activista. A marca dos grandes cineastas, não é preciso dizê-lo, é a capacidade de abrir os seus filmes a toda uma série de leituras sem que isso perturbe a existência do objecto cinematográfico completo enquanto conjugação de forma e função – e Mizoguchi é um mestre absoluto a contar histórias.

Veja-se o modo como ele encena (mais do que apenas filma) o espaço – as sequências assombrosas, e assombradas, dos lagos em Contos da Lua Vaga e Os Amantes Crucificados; as escadas e pátios, os biombos e portas que funcionam como reveladores ou ocultadores do drama; a maneira como os indivíduos se movem por entre uma arquitectura interna que define com precisão o estatuto de cada personagem e a função de cada lugar. Sempre com uma elegância, uma clareza, uma atenção ao detalhe que concentra a narrativa no que é essencial enquanto preenche, de modo quase imperceptível, tudo o que é secundário ou complementar.

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Em A Mulher de Quem Se Fala, por exemplo, a divisão entre a esfera privada e a esfera pública é dada de modo exemplar num filme cuja narrativa se instala, precisamente, no espaço que separa uma mãe e uma filha, o idealismo e o pragmatismo. A mãe é Hatsuko, a gueixa que subiu a pulso a madame para que a filha pudesse ter uma vida normal, séria; mas Yukiko, a filha, não suporta saber que foi o corpo das outras a pagar a sua educação e sabe que essa é uma nódoa que não conseguirá apagar e que a condenará a nunca poder subir de patamar. O filme raramente sai da casa que é, ao mesmo tempo, a residência privada de mãe e filha e bordel público – e, quando o faz (na sublime cena da representação teatral), é a abolição dessas divisões entre público e privado que acelera o drama. Só que, onde alguém como Douglas Sirk teria exacerbado visualmente a dimensão emocional, arrebatadora, Mizoguchi exerce o máximo de contenção, colocando todo o ónus no rosto de Kinuyo Tanaka (sua “musa” durante 17 filmes), para traduzir visualmente, sem palavras, a súbita revelação do drama.

Os filmes de Mizoguchi – ou antes, estes filmes de Mizoguchi – são obras de uma maturidade e de uma tranquilidade notáveis, usadas para sublinhar as convulsões emocionais das suas personagens, tornando-o num dos grandes estilistas do melodrama clássico – um género que, sobretudo quando centrado nas mulheres dilaceradas entre desejo e dever, não raras vezes roça a tragédia. O que os filmes de Mizoguchi procuram é a ausência da contradição entre desejo e dever, a vontade de encontrar uma ponte que ligue ambos tal como Lang procurava em Metrópolis unir o coração e a razão – é ver como são o desejo e o ciúme gerados pelo médico Matoba que acaba por reaproximar Hatsuko e Yukiko; como é o sacrifício dos “amantes crucificados” Osun e Mohei que permite o castigo de Ishun; como é a devoção de Ohama e Miyagi que recoloca os irmãos oleiros Genjuro e Tobei no bom caminho. Não são simples personagens sacrificiais que cumprem uma função arquetípica; são gente de carne e osso que balança o que é correcto com o que o coração lhes diz. O mundo não mudou assim tanto nos últimos 500 anos, parece dizer-nos Kenji Mizoguchi. Vê-lo em 2017 é descobrir um cineasta que já há 50 anos falava de nós.

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