Falta de confiança mantém EUA e Rússia de cara fechada e punhos cerrados
Viagem do secretário de Estado norte-americano a Moscovo só resultou na aprovação de uma equipa de coordenação para perceber se é possível que as relações bilaterais melhorem.
Se fosse um sketch dos Monty Python, a visita do secretário de Estado norte-americano à Rússia seria aquele em que um grupo de resistentes contra a ocupação romana se reúne para decidir que medidas devem ser tomadas – apenas para voltarem a discutir o que decidir a seguir a terem tomado uma decisão. Num sinal de que a retórica inflamada dos últimos dias foi o habitual duelo para ver quem ficava em melhor posição à entrada para o encontro, os governos dos dois países decidiram formar um grupo de trabalho para discutir o que levou à deterioração das suas relações – na esperança de que no futuro Moscovo e Washington voltem a falar olhos nos olhos.
"Concordámos em nomear enviados especiais para terem conversas pragmáticas sobre a irritação que surgiu, em primeiro lugar, durante a Administração Obama", disse o ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Sergei Lavrov, numa conferência de imprensa em que tanto a Rússia como os Estados Unidos mantiveram as posições que já tinham manifestado antes do encontro em Moscovo.
A conferência de imprensa foi o ponto final numa viagem do secretário de Estado norte-americano marcada por um bombardeamento de acusações por parte das autoridades russas. Quase toda a gente, incluindo o Presidente Vladimir Putin, participou naquilo que em certos momentos pareciam ser uma praxe ao novo representante da política externa dos Estados Unidos, que ainda por cima aconteceu poucos dias depois do ataque norte-americano contra uma base aérea síria usada pelas forças russas.
O ponto alto da pouco habitual hostilidade com que os russos receberam Rex Tillerson (um velho amigo dos dirigentes russos) foi o quebra-cabeças em que se tornou o anúncio de uma possível reunião entre o norte-americano e o Presidente russo. Antes do ataque da semana passada, esse encontro estava na agenda, até porque os líderes russos nunca deixaram de receber um secretário de Estado norte-americano desde o fim da II Guerra Mundial. Mas essa porta que esteve quase sempre aberta foi-se fechando com o passar dos dias, até que esta quarta-feira de manhã o porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, começou a brincar com a situação: primeiro a reunião não estava marcada; depois não estava marcada, mas se calhar ia acontecer; e finalmente acabou mesmo por acontecer, não sem que o nome do mais alto representante da Administração Trump a visitar a Rússia se visse atirado para um jogo do empurra nos jornais de todo o mundo.
Antes desse encontro, Rex Tillerson e Sergei Lavrov conversaram durante três horas. Para o caso de a linguagem corporal não ser um indicador suficiente do estado a que chegou a relação entre os dois países, a primeira intervenção de Lavrov quando as equipas de ambos os lados já estavam sentadas foi para repreender uma jornalista norte-americana, que gritava uma pergunta: "Quem é que a educou? Que é que lhe deu maneiras?"
Do encontro entre Lavrov e Tillerson ficou a certeza, afirmada e confirmada pelos dois, de que as relações entre os Estados Unidos e a Rússia estão num ponto muito baixo de confiança – já estavam durante a Administração Obama, principalmente a partir do momento em que a Rússia anexou a península ucraniana da Crimeia, e pioraram após o ataque norte-americano da semana passada contra a base síria em Shayrat com 59 mísseis Tomahawk.
"Discutimos com franqueza as nossas actuais relações. Essas relações atingiram um ponto baixo, e as duas maiores potências nucleares não podem ter estas relações", disse o secretário de Estado norte-americano na conferência de imprensa ao lado do ministro dos Negócios Estrangeiros russo.
A reunião entre os dois serviu para falar sobre o estado das relações económicas, a situação na Coreia do Norte e no Afeganistão, e "com brevidade" sobre a cibersegurança, mas o assunto em destaque foi, naturalmente, a Síria.
Nenhum dos lados se moveu um milímetro que fosse em relação aos últimos dias: para os Estados Unidos, não há futuro político para Bashar al-Assad na Síria, e para a Rússia isso é um assunto que diz respeito aos sírios; para os Estados Unidos, ainda não há provas suficientes para acusar Assad de crimes de guerra, mas se as coisas continuarem assim isso acontecerá mais cedo ou mais tarde; para a Rússia, se foram cometidos crimes, é preciso que antes sejam investigados.
É essa também a posição de Moscovo em relação ao que aconteceu na semana passada na província síria de Idlib, quando várias dezenas de pessoas morreram num ataque em que terá sido usado um agente químico – segundo Sergei Lavrov, se o Conselho de Segurança das Nações Unidas não aceitar o envio de uma equipa "internacional e independente" para Idlib e para a base aérea atacada pelos norte-americanas, isso significa que "não estão interessados em que se saiba a verdade".
Uma resolução que foi discutida esta quarta-feira pelo Conselho de Segurança contou com a oposição da Rússia, porque Moscovo diz que a formulação do texto "não é tanto o pedido de uma investigação mas mais uma legitimação da acusação contra Damasco".
Também em relação ao futuro do conflito no terreno na Síria o mundo ficou igual ao que estava antes da viagem de Rex Tillerson à Rússia. O secretário de Estado norte-americano reafirmou que o país voltará a atacar se o regime de Assad usar armas químicas, e o ministro dos Negócios Estrangeiros russo disse aos Estados Unidos que o melhor para todos é que os mísseis Tomahawk não voltem a sair dos contratorpedeiros.
Antes dos encontros entre Lavrov e Tillerson e da reunião dos dois responsáveis com Vladimir Putin, o Presidente norte-americano, Donald Trump, enviou a partir dos Estados Unidos a mensagem mais concreta e firme que saiu de Washington na última semana: numa entrevista à Fox News em que se referiu a Assad como "um animal", Trump disse que os Estados Unidos "não vão entrar na Síria". Na mesma entrevista, o Presidente norte-americano culpou Barack Obama pelo agravamento da situação na Síria por não ter ordenado um ataque contra o país, mas nessa altura o então cidadão Trump pediu a Obama que não atacasse porque poderia dar início a uma terceira guerra mundial.