Overbooking viral
Várias questões ficaram por responder porque uma vez mais a comunicação social limitou-se a reportar a “notícia” gerada no Facebook.
Quando um qualquer cidadão munido de um smartphone capta uma imagem que colide com o padrão normativo implícito de uma maioria de utilizadores, de uma rede social e esse conteúdo é partilhado com o intuito de emitir e gerar uma opinião em massa, expressa de forma viral (isto é, sem referências, nem fronteiras deontológicas), apresentando-se como alternativa informativa ao trabalho que os jornalistas deveriam fazer, o espaço público perde, a desinformação vence.
Aparentemente o episódio da United Airlines, a que "todos" assistimos quase em tempo real, é mais complexo do que o que foi veiculado pela comunicação social. Mais uma vez, optou-se pela interpretação “simplificada”, sem fact checking, das imagens disseminadas pelo Facebook, até porque essa verdade é mais conveniente a todos nós: irritamo-nos com a brutalidade do episódio, esconjuramos a companhia, e voltamos a fazer o check-in, com a mesma normalidade de sempre.
Para lá do que é transitório neste incidente, isto é, a violência exercida sobre o passageiro e a má publicidade que possa advir para a companhia, que seguramente contratará os melhores gestores de crise e comunicação para lidar com os inevitáveis danos reputacionais, persiste uma total opacidade e desconhecimento da parte dos passageiros sobre uma série de regras e práticas do sector, que foram sendo decididas e impostas à margem dos seus interesses e direitos, enquanto passageiros e cidadãos e com as quais convivem serenamente... até o dia em que o sistema faz um random error.
A United Airlines, como todas as transportadoras norte-americanas (e não só) têm permissão para emitir bilhetes em overbooking até um determinado número. Ninguém sabe qual é o limite de overbooking em cada voo, aliás nenhum passageiro sabe nada do que se passa em matéria dos seus direitos enquanto passageiro, não obstante os folhetos de sensibilização que vão sendo distribuídos nos aeroportos. Nos EUA, as transportadoras aéreas emitem um “Contrato de Transporte” (“Contract of Carriage”), que em poucas palavras significa que um passageiro pode ter bilhete, mas não lhe ser assegurado um lugar num determinado voo. A conversão do bilhete num lugar efectivo, que se processa na porta de embarque, é uma prerrogativa da companhia aérea, a qual tem total discrição para decidir quem pode ser retirado da aeronave numa situação de overbooking.
De um modo geral, as situações de overbooking são resolvidas na porta de embarque e antes do embarque dos passageiros. Porém neste caso, isso não aconteceu. A companhia alegou a necessidade de transportar, com urgência, quatro funcionários para integrar a tripulação de um outro voo com 180 passageiros que aguardava em Louisville. Neste sentido, solicitou a quatro passageiros que voluntariamente prescindissem dos seus lugares. Aparentemente, apenas três pessoas se voluntariaram a ficar em terra e embarcar no dia seguinte, recebendo em contrapartida US$800 e alojamento num hotel. O quarto passageiro terá sido “sorteado” e tendo recusado o incentivo oferecido pela companhia, foi retirado à força do avião com a “ajuda” da polícia de Chicago. Diz-se que o homem era médico e precisava de regressar a casa para ver os seus pacientes.
Quem viaja com assiduidade já terá seguramente passado por uma situação de overbooking e terá invocado argumentos semelhantes: uma reunião de trabalho inadiável, um aniversário de um familiar, uma entrevista de emprego. Ou, numa escala menor cada vez mais frequente, terá negado, na porta de embarque, que a sua mala de cabine fosse enviada para o porão, pelo facto do voo estar “demasiado cheio”. Em que medida e até que ponto, é que um problema gerado pela companhia (o overbooking e a gestão dos cofres da cabine, embora o segundo derive também da falta de civismo dos passageiros) pode ser resolvido através de uma restrição de direitos dos passageiros com benefício de terceiros? Em relação ao caso em concreto, é legítimo “incomodar” 4 passageiros de um voo para resolver a situação de 180 passageiros noutro voo da companhia da qual são alheios? Quando e em que moldes é que isso deve ser feito? Se os incentivos foram rejeitados pelo passageiro, é legítimo o uso da força? Em que medida é legítimo um polícia intervir e fazer uso da força ao serviço de uma companhia aérea, para impor a sua resolução (unilateral) de natureza contratual (e não em resposta a uma ameaça, distúrbio ou risco de segurança) sobre um cliente? Estas e outras questões, ficaram por responder, porque uma vez mais a comunicação social limitou-se a reportar a “notícia” gerada no Facebook.