Karan Mahajan: Contra o olhar míope sobre terrorismo e religião

A Associação das Pequenas Bombas, do indiano Karan Mahajan, é um exercício literário íntimo sobre o terror a partir do quotidiano em Nova Deli. É a tragédia enquanto definição de vida; quando acontece “é impossível recuperar”, diz em entrevista.

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Karan Mahajannasceu em 1984, no Connecticut, EUA, mas cresceu em Deli numa família da classe média como a que descreve num livro que é também sobre classe, política, religião e o domínio masculino que, quando frustrado, pode ser gerador de violência

“O atentado bombista, a que o Sr. e a Sra Khurana não assistiram, foi um acontecimento arrasador e cheio de repercussões.” A primeira frase do livro põe o leitor perante o trauma que será o motor de A Associação das Pequenas Coisas (Relógio d’Agua), o segundo romance do indiano Karan Mahajan. Em Maio de 1996, o mercado de Lajpat Nagar, no sul de Nova Deli, foi alvo de um atentado terrorista. Treze pessoas morreram ao rebentar “uma bomba de pequena dimensão”. Entre as vítimas estavam os dois filhos do Sr. e da Sra. Kharana, dois rapazes de 11 e 13 anos. O amigo de ambos, Mansoor, ia com eles e sobreviveu, mas a sua existência passou a ser para sempre determinada por um antes e um depois da bomba.

É esta a tragédia definidora não apenas das suas vidas, mas de todo o livro que se estrutura à volta da impossibilidade do luto após um atentado terrorista. Não há luto possível para o terror porque há no terror qualquer coisa de global. A ideia atravessa o romance. “O bom atentado bombista começa em todo o lado ao mesmo tempo. Um mercado cheio de gente também começa em todo o lado ao mesmo tempo”, continua o livro que tanto se passa na intimidade de cada uma das personagens como se alarga, tentando conquistar o domínio universal.

“Quando alguém sofre uma grande perda, essa tragédia vai passar a definir toda a sua vida. Toda a gente irá para sempre falar disso, pelo que se torna impossível recuperar desse acontecimento”, refere o escritor que nasceu em 1984, no Connecticut, Estados Unidos, mas cresceu em Deli numa família da classe média como as que descreve num livro que é também sobre classe, política, religião e o domínio masculino que, quando frustrado, pode ser gerador de violência. “Os temas do romance são políticos, mas os detalhes, o cenário, a consciência do espaço, os costumes da vida burguesa em Deli são todos pessoais”, continua Karan Mahajan, admirador de Orhan Pamuk, V.S. Naipaul, Cynthia Ozick, Arundhati Roy, Saul Bellow, Joseph Conrad, RK Narayan ou Joseph Roth.

Aceitou responder a algumas perguntas a partir de Austin, Texas, onde vive, sobre o seu romance, considerado pelo New York Times um dos dez melhores de 2016. O livro vive sempre nesse difícil equilíbrio entre o íntimo e o colectivo. “Não consigo escrever a menos que tenha um conhecimento profundo do tema, e isso significa que a minha escrita tende para o íntimo”, afirma o escritor que escolheu para protagonistas duas famílias da classe média de Nova Deli numa altura em que se alargava o fosso entre quem tinha dinheiro e os miseráveis, e o preconceito de não ser bem-sucedido crescia em função da menor capacidade para adquirir bens. O Sr. Khurana, Vikas Khurana, realizador de documentários contra a vontade da família, não ganhava o mesmo dinheiro se tivesse escolhido ser advogado ou informático; no seu meio, era um dos mais pobres, quando ser pobre significava fracasso. Foi por isso que em vez de trocar de televisor, Vikas, fechado entre o preconceito e a necessidade, decidira em segredo mandar consertar o seu velho aparelho. No dia e na hora em que a bomba explodiu, os seus dois filhos e o amigo tinham ido buscar o televisor. Além da dor, Vika carregará a culpa. Não quis ser ele a ir ao mercado.

Ao longo do livro, Mahajan explora a solidão da dor, da culpa, dos efeitos do colectivo no que há de mais privado. Vika e a mulher, Deepa, surgem nesse silêncio a que se resume, em última instância, a tragédia pessoal. “Para quê falar? Ergue-se uma colher de guisado grosso e chora-se.” Estamos perante um ambicioso exercício literário sobre o luto num tempo em que muito se escreve e se comunica o luto enquanto experiência colectiva. Numa civilização global, o terror é global e logo o luto.

Como distinguir, nestas circunstâncias, a verdadeira tragédia da perda do ruído à volta da tragédia global? Mahajan responde: “Eu queria mostrar as formas em que o sofrimento privado é delineado face ao sofrimento colectivo. O que significa ser vítima de um ‘pequeno’ bombardeamento numa época de terrorismo? Enquanto vítima, podemos ser esquecidos pelo nosso próprio governo e na nossa própria cidade, mas temos um sentimento de ligação e solidariedade com outras vítimas à volta do mundo. Novos bombardeamentos reavivam o nosso próprio sofrimento. Ao mesmo tempo podemos ser terrivelmente solitários. O romance desloca-se para um lado e para o outro desses pólos.”

Heróis e mártires

Quando Mansoor, o amigo sobrevivente, o rapaz privilegiado a que fora sempre poupada a visão da pobreza numa cidade como Nova Deli, percebe que não morreu, revela-se em toda a sua solidão ante um mundo que conhecia apenas à distância. Agora ele está ali e são dele os olhos e os ouvidos filtrados por um narrador omnisciente: “As multidões eram constituídas por um tipo particular de habitante de Deli que ele reconheceu imediatamente. Ligeiramente subnutrido, usava roupas de poliéster garridas, bigode preto, gostava de brincos de tarraxa, trazia calças demasiado puxadas para cima na cintura, deixava os dedos passearem pelo nariz, as mãos faziam gestos ligeiramente desengonçados e afectados e tinha um rosto cínico e pouco inteligente que nunca pareceria sério (as mulheres tinham o mesmo aspecto, mas com bigodes menos espessos e saris florais baratos).” Isto é uma multidão, e “multidões atraem bombas”, escreve Mahajan que, nesta entrevista, define muito simplesmente terrorismo como medo. “Medo, medo perpetrado por terroristas, pelos meios de comunicação e pelos políticos.”

Os acontecimentos de A Associação das Pequenas Bombas desenrolam-se entre 1996 e 2003, com Karan Mahajan a fornecer um retrato detalhado do quotidiano de Nova Deli, dominado pelos contrastes sociais, religiosos, pelas disputas geoestratégicas que envolvem a Índia, Paquistão, Caxemira; o preconceito, tanto de classe como religioso; a impossibilidade, por exemplo, de explicar a pobreza quando se quer dar uma lição que nem o próprio aprendeu: a da obscenidade de sentir vergonha de andar num velho Fiat quando a maior parte da população dorme na rua. “Porque se recusam os pobres a fornecer-nos uma representação adequada do seu sofrimento? Porque não fecham os rostos e gemem, pelo menos?” Vikas quisera mostrar a pobreza de modo a que servisse de lição aos filhos. Frustrou-se. “Enfiados no fundo das tendas de lona azul enrugada, os homens fumavam bidis e jogavam às cartas. Um sapateiro martelava num sapato até à exaustão. A crianças, barrigudas, estavam nuas e dançavam.” A vida parecia continuar quando ele queria revelar que aquela vida era o fim. “Vikas quase se enervou por transmitirem de si próprios uma visão tão deturpada. Depois sentiu-se mal por desejar que fossem infelizes – não era a sua função humanizá-los? Também se sentiu mal por não conhecer estatísticas que pudessem impressionar os rapazes.”

Seria fácil cair aqui na demagogia. Mahajan foge disso. Estamos sempre a seguir um olhar condicionado pelas circunstâncias, mesmo quando elas surgem inexplicáveis ou indesculpáveis. E pode ser um olhar de vítima, de vingança, de vontade de justiça, de incompreensão, do horror, de medo ou da perda total de medo que acontece ao terrorista treinado como aos pais ante a morte dos filhos. Perde-se o medo quando a vida perde sentido. No caso dos terroristas, a vida pessoal face a um desígnio colectivo.

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Mahajan dá os dois lados. O das vítimas e dos terroristas. Têm nome, rosto, vida e também recorrem ao silêncio quando não lhes resta mais nada. “O silêncio é o único recurso do homem sem poder”, lê-se.

O território é o da ficção, mas o contágio que recebe da realidade é claro. Estamos perante acontecimentos, ambientes, conjunturas reconhecíveis. Em 1996, quando, no livro, se dá o atentado em Nova Deli, o terror ainda não era sentido como global, mas continha muitos dos traços hoje reconhecíveis, incluindo a generalização do preconceito associado, por exemplo, ao Islão. A família Khurana é constituída por um pai panjabi e uma mãe católica. Os pais de Mansoor são muçulmanos, como são os bombistas do mercado de Lajpat Nagar, lutadores pela independência de Caxemira. “Shockie era o principal fabricante de bombas da Força Islâmica e Caxemira a operar no exílio no Nepal. Era um homem de vinte e seis anos, com ar envelhecido, olhos verdes de gato, lábios húmidos e cabelo encaracolado já rareando no topo oval da cabeça. (...) Nos últimos quatro anos matara dúzias de indianos como retaliação pela opressão militar em Caxemira, ampliando o ‘teatro de violência’ da Força Islâmica de Jamu e Caxemira, como os jornais diziam.”

Ele é amigo de Malik, leitor, aspirante a escritor, que se vê na rede terrorista porque era inevitável. Malik complexifica o ataque, qualquer ataque. “Deli é uma cidade muçulmana, com um história muçulmana e movimentos muçulmanos. Para causarmos impacto, precisamos de alvos muçulmanos.” Mansoor era e não morreu. E como muitos muçulmanos ouvia dizer: “É uma religião violenta, com pessoas violentas.” Que como todas as pessoas lidam mal com a falha. “Como todos os homens depois de falharem juntos, a única coisa que queriam era nunca mais terrem de se encontrar.” Acontece não só a quando dois terroristas falham a bomba. “O romance é, em parte, sobre masculinidade – os homens que pensam que têm direito a ter sucesso, a ter mulheres, a serem ouvidos. Quando falham, reagem mal – são tomados pela vergonha”, diz Karan Mahajan.

Estar dividido

Ao investir no retrato dos terroristas, o romance entra numa geografia rural, outro contraste com a imensidão de Deli e novos elementos para olhar o terror. A realidade social de Malik ou Schokie está no oposto da de Mansoor mas partilham uma religião. Mansoor também é julgado por isso; na escola chamam-lhe “mulá”, “paquistanês”, “mosquito” e por isso os pais decidem mandá-lo estudar para os Estados Unidos. Não há aqui qualquer spoiler. Há o 11 de Setembro de 2001 e Mansoor, vítima de Deli, incapaz de fugir à acusação global.

“O romance começa propositalmente em 1996, cinco anos antes do 11 de Setembro, e depois a historia desenvolveu-se até 2003, quando o terror começou a ser sentido como mais ‘internacional’”, conta Karan Mahajan, acrescentado que a ideia nasceu após os atentados de 26 de Setembro de 2008, em Bombaim. A isso, juntou uma memória que não era bem a dele, “a memória de uma explosão relativamente ‘pequena’ que tinha acontecido num mercado" perto do sítio onde crescera. "A minha avó tinha estado lá no dia anterior ao bombardeamento. Por isso nunca esqueci. Decidi explorar essa memória.”

Viajou por toda a Índia, leu “centenas de livros e artigos”, entrevistou pessoas em Deli e noutros lugares. Foi mexer com as suas raízes, num momento em que é um indiano a viver nos Estados Unidos e a classificar como “muito complexa” a sua relação pessoal com a Índia. “Amo o país, mas também tenho uma vida nos Estados Unidos. Estou dividido, e uso cada país para olhar para o outro com uma clareza sempre renovada”.
Ele é também um muçulmano a tentar argumentar. Poderia ser dele a pergunta formulada no livro. “Haverá alguma coisa que possamos fazer enquanto cidadãos informados?” É dele a afirmação: “Todas as religiões têm facções radicais. Esses radicais têm objetivos políticos, mas integram a linguagem da sua religião para ganhar autoridade. Isso é verdade para cristãos, hindus, muçulmanos e outros. Por isso, é importante que não sejamos míopes ao confundir uma religião com o terrorismo.”

A sua circunstância, um indiano nos Estados Unidos, dá-lhe um sentido de desiquilíbrio, ou, como prefere dizer, uma constante sensação de estar fora de equilíbrio”. Não acha isso mau para a sua vida de escritor. “Viver no exterior congela as lembranças e as experiências, e permite que as processe. O exílio é doloroso, mas pode ser uma vantagem para o ou a romancista. Ele ou ela não são facilmente influenciados pelos fluxos de notícias no país em que estão a escrever.” Quanto a acreditar, como Malik, que um escritor pode contribuir para mudar o rumo, no caso, o rumo do terror, Karan Mahajan responde que um escritor não pode nada. “É uma perseguição fútil. Mas há um prazer em apresentar um retrato mais claro e alternativo dos eventos face ao que os meios de comunicação social apesentam.”

De resto? Tudo parece remeter-se a uma questão que vem no romance. “De qualquer modo as coisas más acontecem.”

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