O Portugal das periferias chega a Belém e o responsável é Vhils

Por momentos Alexandre Farto (Vhils) deixa a arte urbana e concebe um espectáculo de palco que reflecte a paisagem urbana e humana das periferias, e a emergência das suas subculturas, ao longo de décadas em Portugal. Periférico é apresentado esta sexta-feira e sábado no CCB, em Lisboa.

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O conceito e direcção são de Alexandre Farto. Mas teve a colaboração preciosa da coreógrafa Anaísa Lopes (Piny) e de seis bailarinos dirigidos por ela Enric Vives-Rubio
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Alexandre Farto saiu da sua zona de conforto Enric Vives-Rubio
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Enric Vives-Rubio
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O seu nome está associado à arte contemporânea e de forma mais particular à chamada "arte urbana". Também já explorou caminhos na ilustração, animação, vídeo ou design. O seu universo, de forma lata, é o da cultura visual. As artes de palco não são o seu habitat natural. Mas esta sexta-feira e sábado, no pequeno auditório do Centro Cultural de Belém, em Lisboa, no contexto da Boca Bienal, será aí que poderemos tomar contacto com o seu trabalho. Falamos de Alexandre Farto, ou seja, Vhils, um dos artistas portugueses mais reconhecidos em Portugal e internacionalmente pelas intervenções escultóricas em todo o mundo.

Desta feita deixou de lado as paisagens urbanas degradadas, ou os espaços expositivos convencionais, para conceber um espectáculo-performance no palco. Não o fez solitariamente. O conceito e direcção são dele. Mas teve a colaboração preciosa da coreógrafa Anaísa Lopes (Piny) e de seis bailarinos dirigidos por ela, e dos músicos Chullage e DJ Ride, entre outros. Todos eles já haviam colaborado em anteriores ocasiões e existia esse historial comum de terem crescido nos ambientes das periferias de Lisboa, tendo aí desenvolvido trabalho criativo numa fase prematura das carreiras, em grande medida em ligação estreita com a cultura hip-hop.   

“O desafio era criar um trabalho em palco, o que para mim é algo distante e está fora da minha zona de conforto”, conta-nos Alexandre, depois de termos presenciado um ensaio. “O que tentei fazer foi criar uma ponte com várias pessoas, como a Piny, que trabalha em dança contemporânea, mas que começou nos graffiti, ou o Chullage e o Ride, conhecidos no hip-hop, mas que hoje estão também na sociologia ou nas electrónicas. Cada um seguiu o seu percurso e nunca tínhamos feito nada sobre o ambiente onde crescemos e que teve muita importância no que produzimos hoje.”

O espectáculo chama-se Periférico e, claro, não é um acaso. Trata-se de uma criação que reflecte a paisagem urbana e humana das periferias, a emergência das subculturas e o impacto no Portugal das últimas décadas. Existe questionamento, mas também celebração, das relações entre centro e periferia, com imagens de arquivo e outras produzidas para o efeito, a revelarem a forma como a Lisboa e o Porto metropolitanos se foram constituindo ao longo dos anos, com vagas de pessoas provindas das ex-colónias portuguesas ou das zonas economicamente mais débeis de Portugal. Zonas de exclusão, de resistência ou de fortalecimento comunitário, esses contextos foram também assistindo à formação de estimulantes ambientes culturais e é isso que é mostrado. Nesse sentido, tematicamente, não é algo muito distante do trabalho artístico de Vhils.

“Sim, é verdade”, concorda. “Existe uma reflexão sobre as identidades e uma panorâmica do Portugal do 25 de Abril e do que se seguiu, a partir do momento em que fomos também expostos à cultura que vinha de fora, como é o caso do hip-hop.” Como é que todas essas interligações (centro e periferia, campo e urbe, rua e palco, local e global, meios marginalizados e institucionalizados) se desencadearam e que efeitos tiveram, eis em parte a proposta desenvolvida. Para além das imagens, do trabalho de concepção, ou de pesquisa e edição, são centrais os movimentos dos bailarinos, entre a dança contemporânea e a fisicalidade da rua da dança hip-hop, e a música, com referências sonoras familiares (hip-hop, trap ou electrónicas), mas sempre a partir de um ponto de vista desviante, instituindo climas saturados e opressivos ou mais lúdicos.  

Na parte final existe um solilóquio em forma de poema-rap da autoria de Chullage que acaba por ser determinante. Críptico, realista e satírico, tenta mostrar que muitas das tensões entre centros e periferias continuam latentes. Muitos muros foram sendo destruídos ao longo dos anos em Portugal, mas outros foram sendo construídos. “Ainda existem barreiras, claro”, assume Alexandre. “Há zonas de separação que ainda existem, apesar de podermos romantizar que elas se atenuaram.”

Por falar em barreiras, uma das que ainda subsistem em grande parte refere-se às práticas e também aos consumos artísticos. É raro ver gente das artes em concertos e vice-versa. Ou da clássica em espectáculos pop. Ou da arte no teatro. E assim sucessivamente. A curiosidade, a troca desinteressada ou a integração de novas realidades de forma transversal ainda não é um dado adquirido. A compartimentação subsiste.

Em parte é também isso que a Boca Bienal quer desbloquear. “Sim, é verdade, isso ainda acontece”, concorda Alexandre, “até porque continua a existir uma grande divisão entre formas artísticas institucionalizadas e outras mais informais.” “Mas creio que essas pontes têm vindo a ser criadas e estes desafios da bienal são um exemplo”, afirma, falando do seu próprio espectáculo, sinergia entre diferentes territórios, em que foi criada uma convergência entre artes visuais, formas musicais e diferentes maneiras de olhar para a dança. “Tudo permeável e em sintonia.”

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