Father John Misty: “O amor não é poesia. É o que inventámos para sobreviver”

Para uns é diletante, para outros alguém que expõe vulnerabilidade, nesse gesto denunciando o mundo apático de hoje com canções tão desnudadas quanto grandiosas, num álbum, Pure Comedy, que ele diz ser uma carta de amor à humanidade.

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Narcisista, diletante e pretensioso, garantem uns. Humanista, vulnerável e genuíno, declaram outros. Um pouco disso tudo, alegamos nós, porque nem tudo é a preto e branco. No campo da música actual poucos geram tantas divisões como o cantor-compositor Josh Tillman, 36 anos, ou seja Father John Misty.

Como outra personagem excessiva e idiossincrática – o rapper Kanye West – também ele gosta de quem arrisca em grande. O próprio saturou-se de fazer música indie formatada como existe aos magotes por aí, ao longo de oito álbuns como J. Tillman, e os anos na bateria com os Fleet Foxes também não o convenceram.

Foi apenas a partir de 2012, quando teve uma epifania e relançou a carreira, adoptando o pseudónimo Father John Misty, que veio ao de cima o seu sentido de humor, e as suas canções folk-rock que conseguem ser tão desnudadas e confessionais quanto grandiosas e espelhando grandes narrativas, mostrando tanto o absurdo como o prazer de existir. Ou como ele nos diz: “Andamos todos perdidos mas a vida continua a ser um milagre.” Hoje já não passa despercebido, seja para ser adulado ou criticado, escrevendo inclusive canções para celebridades como Beyoncé e Lady Gaga.

“Os falhanços fazem sentido desde que sejam colossais”, ri-se, dizendo-nos que admira quem parte para um trabalho artístico tentando responder às grandes questões da experiência humana. “Nunca se chega a uma resposta definitiva que seja capaz de satisfazer a maioria dos indivíduos, mas no processo de interrogação confrontamo-nos a nós, e ao mundo, e isso é vital”, afirma, citando realizadores como Terrence Malick e David Lynch ou escritores como Kurt Vonnegut, como o tipo de criadores que não receiam tentar decifrar os enigmas da existência.

É esse tipo de interrogações, maiores que a vida, que o movem. No primeiro álbum, Fear Fun (2012), interrogava-se sobre o seu lugar no mundo. No excelente I Love You, Honeybear (2015), era o amor que era dissecado, discorrendo sobre as inseguranças e medos geradas pela partilha da intimidade, logo ele, que até aí era descrente no amor. “Um verdadeiro cínico”, ri-se. E agora, Pure Comedy, o álbum que é editado em todo o mundo esta sexta-feira (e que será mostrado ao vivo a 20 de Novembro no Coliseu de Lisboa), que ele diz ser “sobre como o amor é essencial para a nossa sobrevivência como espécie. É sobre o significado disto tudo. É existencial mas também uma carta de amor à humanidade, que é algo essencial para lidar com o desamparo ontológico.”

Fá-lo com seriedade, às vezes com uma honestidade brutal, como se disso dependesse a sua vida. Mas também com humor. “De outra forma não seria possível”, assegura, “porque a minha música vive desse diálogo curioso com a experiência humana enquanto todo”, fazendo recordar nas suas palavras Leonard Cohen ou o escritor Philip Roth, dois dos seus heróis. Todos os seus discos acabam por se relacionar uns com os outros, como continuação ou reacção. Dir-se-ia que no caso do novo álbum as duas premissas estão contempladas. “Depois de ter acabado o último álbum e de todos os concertos sentia-me esvaziado. Foi uma experiência muito violenta daí que se encontrem vestígios dessa intensidade neste novo disco, que acaba por ser a continuação do anterior registo, mas numa linha muito diferente.”

Quem não chora não mama

É possível encontrar pontos de ligação, diz ele, entre canções do anterior disco como Holy shit, “que é sobre os limites da racionalidade no amor”, e o novo álbum. No anterior disco era o amor a dois que o parecia interessar, até porque havia casado em 2013 com a fotógrafa e realizadora Emma Elizabeth Tillman. Agora é o amor no sentido universal que é focado. “O amor não é apenas algo abstracto, um ideal romântico, qualquer coisa de celestial”, diz-nos, alegando que é assim que a maior parte das pessoas o vê. “Quando se pensa no assunto de forma séria percebe-se que, de muitas formas, o amor é a essência da sobrevivência humana. No fundo esse é o ponto de partida de Pure Comedy.” A pergunta que o mobiliza é “de onde vem o amor?”, nesse sentido fazendo eco com as comuns inquietações do realizador Terrence Malick.

“Penso que o amor vem do nosso desamparo quando nascemos, parte desse pedido de auxílio. Somos das criaturas mais desprotegidas que andam por aí no planeta terra quando nascemos”, diz, entre o sério e o divertido, “e durante anos e anos não somos capazes de tomar conta de nós próprios, chorando à noite – ‘quem não chora não mama’, não é o que dizemos? Estou em crer que isso acaba por ser verdade na maior parte do tempo.”  

Na sua visão o amor não é um ideal romântico. “O amor não é poesia. O amor é algo que inventámos para sobreviver. É uma forma de permanência. É o oposto de morte. Sem ele, literalmente, morreríamos. Simplesmente, quando não nos amamos uns aos outros, não é possível sobreviver, eliminamo-nos. Quando decidimos viver apartados uns dos outros, ou seja viver sem amor, a nossa existência torna-se numa interminável comédia grotesca.”

Quem se atira a grandes perguntas por vezes pode ser apelidado de “pretensioso” e ele tem consciência desse efeito, “porque muitos antes tentaram responder a essas perguntas e falharam. Falhamos todos. Mas é o gesto de tentar que é profundamente humano. Por outro lado essa assunção de ‘pretensiosismo’ é muito preguiçosa. Sei que não existem propriamente respostas fáceis para as minhas interrogações, mas não receio rir-me do meu próprio gesto. Não é a envergadura da pergunta que nos deve assustar é a forma como a abordamos e o caminho que fazemos na tentativa de chegar lá. O pretensiosismo não tem dimensão. Uma simples frase no Facebook ou no Twitter pode esconder todo o pretensiosismo do mundo.”

A barba desapareceu, o cabelo está mais curto

Durante muito tempo foi um devoto das redes sociais. Depois foi-se, aparentemente, desiludindo com um universo onde a ambiguidade e os pontos de contacto entre ironia e sinceridade nem sempre são captados. Em Setembro passado abandonou mesmo o Twitter e o Instagram, onde era bastante activo. Há semanas regressou ao Twitter. Hoje diz que a “cultura da internet” o deixa indiferente e que “existem coisas boas e más” sem querer particularizar, embora refira que “é preocupante perceber que existe quem dependa, enquanto pessoa, do reflexo e da forma como os outros o vêem, o que é patético”. Mas, reforça, depende sempre da forma como utilizamos essas ferramentas. “No meu caso por vezes preciso de me refugiar. Foi isso que aconteceu quando estava a preparar este álbum. Apenas isso e nada mais.”

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Foi a partir de 2012, quando Josh Tillman teve uma epifania e relançou a carreira como Father John Misty, que veio ao de cima o seu sentido de humor, e o seu folk-rock desnudado mas grandioso

O facto de hoje estar mais divorciado da internet não o impede de ter um olhar reflexivo sobre o que é dito sobre ele. “Sei que chateio muita gente – principalmente os que se assemelham a mim – porque lhes faço ver o que eles odeiam em si próprios, mas ao mesmo tempo essa visão trágica da vida que carrego comigo não me impede de me divertir e de dizer que a vida é uma coisa absolutamente maravilhosa e isso pode ser tramado para quem passa os dias a dizer mal de tudo e mais alguma coisa à sua frente.”  

Na internet a maior parte tende a partilhar aquilo que acha que vai obter mais impacto junto dos outros. “O que é paradoxal”, argumenta, porque na sua opinião o que nos aproxima enquanto seres humanos são as nossas fragilidades. “Encenarmo-nos apenas a partir da exultação, como se a nossa vida fosse sempre incrível, é estranho. São as partes mais vulneráveis dos outros que nos seduzem, os seus desvios, aquilo que nem sempre faz sentido e vice-versa. Ou seja, amamos o outro a partir do momento em que percebemos que não vamos ser julgados por ele, porque ambos partilhamos o mesmo tipo de fragilidades.” Reconhecemo-nos nas suas impurezas, alivia-nos perceber que existem outros tão vulneráveis como nós. “E a cultura da internet quase nunca propicia isso. Aliás a vida moderna quase não tem isso. Esquecemo-nos de olhar realmente os outros nos olhos.”

Não foi apenas o seu afastamento da internet que foi notada. A barba também desapareceu e o cabelo está mais curto. Diz-se também que optou por se abster de beber álcool e consumir aditivos por causa da sua depressão e ansiedade crónica. Queria sentir-se totalmente desperto, porque na sua visão a vida moderna está tomada pela apatia e por uma forma nefasta de cinismo. “A eleição de Trump foi apenas o último momento para percebermos o quão absurdo o mundo é. Nem sempre a racionalidade consegue responder a tudo. A vida é bela mas aleatória em muitos sentidos.”

O álbum foi composto antes da vitória eleitoral de Trump, mas já quando se sabia que iria ser o candidato republicano, o que contribuiu para que funcione como testamento do momento actual do mundo. A cultura do ressentimento, o isolamento das pessoas, o consumismo como única forma de consolo, a animosidade contra Hillary Clinton e a letargia em encontrar alternativas são as razões que inúmera para justificar uma vitória que não o surpreendeu. “As pessoas sentem-se abandonadas e não conseguem comunicar entre si de uma forma real, apesar de termos tantos canais de comunicação. Nada as prende. Estão imersas no rancor e sem horizonte de futuro. E depois a passividade, a auto-satisfação no vazio, o cepticismo e o cinismo, onde vivi parte da minha vida, portanto sei do que falo, ganharam. Agora já não é apenas teoria distante. É mesmo real. É este o mundo que temos.”

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A tecnologia, a política, as redes sociais, o ambiente, a natureza humana e a noção de progresso são questionadas por ele, umas vezes de formas incisivas, outras hilariantes, sem que se coloque fora da autocrítica. Também foi complacente com essa forma de estar durante muito tempo. "Vivemos rodeados de distracções inúteis. Não nos focamos no amor nesse sentido. Preferimos a politiquice inútil, a religião ou o brilho inútil do entretenimento. Distraímo-nos uns aos outros. E eu contribuo para isso porque faço parte desta indústria do entretenimento.” Às tantas perguntamos-lhe o que pode um músico nestes tempos conflituosos. “Sei lá!”, exclama, “se tiver consciência do seu lugar na cadeia deste capitalismo tardio já não será mau. Mas deve ser também intransigente consigo próprio e arriscar, não tendo medo de ser vulnerável, mesmo que isso signifique expor-se à crítica.”

Do seu ponto de vista existe uma linha que separa arte de entretenimento. A arte existe para revolver a vida. O entretenimento para nos fazer esquecer dela, nem que seja apenas por momentos. “Mas é importante estarmos dentro das coisas para termos consciência delas e contribuir para a sua transformação”, diz alguém que depois do sucesso do segundo álbum viu a sua visibilidade crescer em flecha. A prova foram os convites de Beyoncé e Lady Gaga para duas colaborações e a admiração confessa de cantoras como Lana Del Rey. Ele era um dos co-compositores creditados em Hold up de Beyoncé e escreveu também Come to mana e Sinner’s pray para o álbum Joanne de Lady Gaga. Depois seguiram-se outras solicitações declinadas. “A maneira como a música é concebida industrialmente não me interessa”, reflecte, “mas é possível ter boas experiências e foi esse o caso”, garante. “Aproximei-me de outras pessoas e expus ideias num contexto que não costuma ser o meu e isso foi bom.”

Se do ponto de vista temático existem linhas de continuidade com a obra anterior, isso também sucede no plano musical, com o novo álbum a manter a beleza e intensidade do anterior. É folk mas em vez de riachos, estamos num programa de hiper-realidade da TV. Há orquestrações opulentas (os arranjos de Leaving L.A. são de Gavin Bryars e de In twenty years or so pertencem a Nico Muhly) mas também existem baladas mínimas para piano ou guitarra. Se no anterior disco deixou de ter medo do ridículo, expondo-se sentimentalmente, aqui vai ainda mais longe, alargando o seu raio de acção, com a longa e complexa balada Leaving L.A. a ser o centro do disco. São treze minutos, sem refrões, com a sua voz serpenteando por entre momentos tragicómicos (“I’m merely a minor fascination to / Manic virginal lust and college dudes”, canta, antecipando que acabará por ser trocado pelos fãs por outro músico quando ouvirem “10-verse, chorus-less-diabrite”), numa canção que foi composta quando a relação com a mulher passava por um período de incerteza, na altura em que decidiram mudar para Nova Orleães.

Outras canções contêm um travo de provocação, como acontece em Total entertainment forever, que começa com uma menção à cantora Taylor Swift (“Bedding Taylor Swift every night inside the Oculus Rift / After mister and the missus finish dinner and the dishes”), como se quisesse sublinhar que o mundo de hoje está recheado de fantasias virtuais ou de prazeres vazios, embora ele seja mais cândido na explicação, argumentando que o nome da cantora americana lhe surgiu de forma inconsciente, durante um sonho, porque lhe estavam sempre a falar dela nas entrevistas.

Em termos de processo foi uma obra solitária. É sempre assim, afirma. “Não existe nada de muito profundo no método de feitura de um disco. A maior parte do tempo mete medo. Sentamo-nos e tentarmos compor qualquer coisa que nos faz sentido e que soa bem. Por norma estou um ano, apenas eu, a escrever e a compor e depois eu e o produtor sentamo-nos e ouvíamos tudo o que está feito, analisando e dissecando. Não existe grande ciência nisto.”

O trabalho de estúdio parece não o entusiasmar grandemente, mas quem já o viu ao vivo – a última vez que esteve por cá foi o ano passado no festival Nos Alive – sabe do que é capaz em palco. Por vezes parece sair de si próprio, como se envergasse uma máscara para mostrar ainda mais claramente quem é. É como se observássemos uma versão exagerada dele próprio. “É um estado de inconsciência estar em palco”, começa por dizer. “Existe qualquer coisa de irracionalidade e de profunda autoconsciência em tudo aquilo, o que parece uma contradição, mas não é. É como se nos víssemos ao espelho, mas não nos reconhecêssemos. E é isso: quando me vejo em vídeos é difícil de acreditar que sou eu.”

Só não lhe digam que actua como se fosse uma personagem porque não o aceita. “Essa ideia propagou-se depois de adoptar o pseudónimo", exclama, "mas é apenas um nome patético. Quando fazia parte dos Fleet Foxes havia essa ideia de que viveríamos na floresta e seríamos agricultores ou qualquer coisa desse género, mas eramos apenas seres humanos em palco. Não podemos controlar as fantasias das pessoas e a forma como utilizam o nosso nome, mas não existe uma personagem Father John Misty. Existo apenas eu.”

Outra ideia que recusa é que será irónico o tempo todo. Em tempos talvez, hoje não. “Não coloco qualquer distância entre mim e aquilo que quero abordar, implico-me no que faço, por isso não me parece que seja muito irónico neste álbum." Claro que o humor para ele é importante, "como estratégia de sobrevivência no meio deste caos", mas este é até o meu disco mais humanista. "Existe nele uma gravidade que é nova para mim. Mas não existem regras para apreciar arte ou música. Samuel Beckett dizia que ‘nada é mais engraçado do que a infelicidade’, e na verdade essa frase fascina-me, mesmo admitindo que não a entendo na sua plenitude.”

No dia em que comunicamos com ele, declara que acabou de acordar e que a “manhã é a parte preferida do seu dia.” A fama de boémio e de sedutor junto das mulheres já lá vai. Hoje diz que aquilo que o ocupa mais é “não fazer nada”, o que nem sempre é tarefa fácil. “Não é fácil não fazer nada”, ri-se, “mas tento ser muito rigoroso em relação a isso, porque é a partir desse estádio que a minha mente circula e se dinamiza.” E o que é para ele não fazer nada? “As trivialidades. Acordar, vaguear pela casa, fazer chá. Estar com alguns amigos, pelo menos aqueles com quem é possível estar em silêncio sem peso. Ou sentar-me no café a ouvir as conversas.”  

E o resto? A música, a criação, as entrevistas, as digressões, os concertos, o trabalho? “Não me queixo. Às vezes dá-me prazer, outras não. Não deve ser diferente daquilo que faz. Umas vezes deve entrevistar gente fascinante e outras nem por isso. É a vida.”

É assim o Father John Misty de Pure Comedy, complexo, megalómano, narcisista para quem acha que fala demais de si, honesto para quem consegue perceber que nunca ilude que está a falar sempre a partir dele, certamente uma das personalidades mais carismáticas da música actual. Alguém saudavelmente insensato, que gosta nitidamente do gesto largo: se cair, ao menos que a queda seja lá bem do alto.

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