Casas de abrigo tornaram-se num "depósito" de vítimas de violência doméstica

O recurso da casas de abrigo para vítimas de violência doméstica banalizou-se, denuncia a APAV. A associação pede outras medidas de protecção das vítimas e de coacção dos agressores.

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As vítimas de violência doméstica são muitas vezes forçadas a deixar uma vida para trás. E mais tarde, quando deixam as casas de acolhimento, o problema com o agressor ainda não foi resolvido. Fernando Veludo/nfactos

A Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) denunciou nesta quarta-feira a banalização do uso das casas abrigo para vítimas de violência doméstica, que passaram a ser usadas como "espécie de depósito" para situações mais complicadas.

Em entrevista à agência Lusa, por ocasião dos 10 anos da criação da casa de abrigo ALCIPE, que acolhe mulheres vítimas de violência doméstica, Daniel Cotrim, assessor técnico da direcção, faz um balanço positivo do trabalho feito, onde o maior desafio é conseguir a autonomização das mulheres.

De acordo com Daniel Cotrim, a resposta de acolhimento casa de abrigo "passou a ser muito uma resposta social", em que "muitas vezes" se fazem triagens "apressadamente" de situações encaminhadas para casas de abrigo que depois as equipas técnicas percebem que não deviam ter sido para ali destinadas.

"Tem-se banalizado o uso da casa de abrigo e na APAV achamos, inclusivamente, que o número de casas de abrigo é suficiente para a realidade nacional", apontou.

Para Daniel Cotrim, é preciso que as outras medidas de protecção das vítimas e de coacção dos agressores funcionem.

"Não se pode continuar a recorrer às casas de abrigo como uma espécie de depósito para colocar situações que não se sabe muito bem o que fazer com elas. Se achamos que um individuo é perigoso, que pode matar aquela mulher, não vale a pena enviá-la para uma casa de abrigo, mas que se prenda preventivamente aquele homem", defendeu.

Questionou, por isso, que se opte por "fazer uma mulher perder o emprego, sair da sua casa, quebrar as relações afectivas e emocionais com o sítio onde está, os seus filhos terem de abandonar a escola e terem de recomeçar tudo do zero, num sítio onde não conhecem, quando muitas vezes, se calhar, a aplicação correcta e imediata de medidas de protecção e de coacção poderiam ser o suficiente".

Lembrou, por outro lado, que as casas de abrigo servem para proteger do risco, mas que muitas vezes quando as mulheres se autonomizam da casa de abrigo, "a situação de risco ainda não está resolvida e o processo-crime ainda decorre", o que "encerra em si mesmo algo perverso e paradoxal".

Especificamente no que diz respeito ao trabalho feito nas casas de abrigo, e numa espécie de reflexão para o futuro, Daniel Cotrim defendeu a necessidade de um plano nacional, coerente, para trabalhar com as crianças em meio institucional como as casas de abrigo, "que são muito diferentes de outro tipo de centros de acolhimento".

"Achamos que é fundamental haver um plano estratégico para trabalhar com estas crianças e com estes jovens. Não nos podemos esquecer que eles podem ser transmissores intrageracionais ou transgeracionais da própria violência", alertou, considerando necessário evitar que as crianças e jovens que acompanham as mães para as casas de abrigo não se tornem no futuro vítimas ou agressores.

Por outro lado, defendeu que é necessário começar a trabalhar questões "tão fundamentais" como a certificação da qualidade deste tipo de equipamentos, apontando que não basta analisar o equipamento do ponto de vista físico, mas também certificar a qualidade do que é feito e dos procedimentos que são desenvolvidos nas casas de abrigo.