Tozé atirou-se para debaixo de um comboio. Portugal é condenado 17 anos depois
Doente estava no hospital psiquiátrico Sobral Cid, que justiça portuguesa ilibou. Mas Tribunal Europeu dos Direitos Humanos diz que houve negligência da unidade de saúde.
António José Carvalho tinha 35 anos e um historial de problemas mentais atrás de si quando se atirou para debaixo de um comboio que ia a passar em Coimbra.
Não era coisa inédita: menos de um mês antes o operário da construção civil já tinha tentado acabar com a vida, e do seu registo clínico faziam parte as expressões “historial de debilidade mental”, "surtos delirantes", “psicose maníaco-depressiva” e “tentativas de suicídio”.
Naquele dia, faz no final de Abril 17 anos, ausentou-se uma vez mais do Hospital Psiquiátrico Sobral Cid sem que ninguém desse por isso. Quando descobriram, por não ter aparecido para jantar, era demasiado tarde: não mais cruzaria as portas desta unidade de saúde de Coimbra, onde tinha sido internado pela sétima vez desde 1984.
A mãe de Tozé, como ele era conhecido, accionou judicialmente o hospital, pedindo uma indemnização superior a cem mil euros. Acusava-o de negligência, por ter deixado escapar o filho, que tinha uma dependência patológica do álcool e de medicamentos. Onze anos depois da morte, uma juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra disse-lhe que não tinha razão: que não era expectável que o doente fosse pôr termo à vida, porque naquela altura já se encontrava melhor, e que confiná-lo, a ele ou a qualquer outro, dentro do hospital não era solução. “O doente mental em estado de equilíbrio (…) não deve ser tratado como se fosse um incapaz, mentecapto ou criminoso”, deliberou a justiça em primeira instância. Controlar constantemente o operário equivaleria a invadir a sua privacidade, numa hipervigilância que seria não só impraticável como desaconselhável à luz das concepções modernas da saúde mental.
Inconformada, a progenitora recorreu da sentença, mas o resultado foi o mesmo – apesar de, no seu voto de vencido, um dos três magistrados que analisaram o caso no Supremo Tribunal Administrativo ter deixado escrito que era obrigação da unidade de saúde vigiar os doentes, sobretudo aqueles assinalados como tendo tendências suicidas. “O hospital não vedou as suas instalações por forma a cumprir minimamente esses deveres de guarda e vigilância”, escreveu esse juiz. De facto, o local - que fica a 15 ou 20 minutos a pé da estação dos comboios - não tem vedações que impeçam os doentes de se irem embora. O controlo da sua presença é feito à hora das refeições. Nos anos anteriores e nos que se seguiram à morte de Tozé vários outros pacientes escaparam do hospital, alguns deles com consequências igualmente fatais. Casos houve também em que foram eles a agredir outras pessoas.
O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos veio esta terça-feira dar razão à mãe de Tozé, condenando o Estado português a pagar-lhe cerca de 26 mil euros. Considerou que Portugal incorreu neste caso na violação do segundo artigo da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, que obriga os Estados a proteger a vida das pessoas.
“Era expectável que perante um doente que tinha recentemente tentado cometer suicídio e que tinha propensão para fugir do hospital os funcionários tivessem tomado medidas para o evitar”, observam os juízes, que criticam também a lentidão dos tribunais portugueses neste caso.
“Fez-se justiça”, explicam os advogados que acompanham o caso há vários anos, Pais do Amaral e Ana Sousa. “É um caso chocante, este, não existindo em Portugal decisões deste jaez. Esta decisão consubstancia, quanto a nós, um alerta quer aos tribunais portugueses para o tratamento deste tipo de casos, quer, sobretudo, ao Estado português, no sentido de sobre si impender o dever de implementar medidas para que situações trágicas como estas não se repitam no futuro e, assim, para que as pessoas institucionalizadas, especialmente as que não têm a capacidade e o discernimento que todos nós temos, como era o caso do António José, sejam efectivamente protegidas.”
Contactado pelo PÚBLICO, o Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra disse que não se irá pronunciar sobre o caso "até receber informação das entidades competentes." Quanto ao Ministério da Justiça, ainda não decidiu se irá recorrer da decisão do Tribunal dos Direitos Humanos. "Existem, entre os especialistas, entendimentos distintos sobre o modelo de tratamento a aplicar aos doentes com perturbações do foro psiquiátrico", refere uma nota divulgada pelo ministério ao final do dia, que acrescenta ainda que em média apenas 10% das queixas apresentadas aos juízes de Estrasburgo são admitidas, mas que 90% destas resultam em condenações dos Estados.
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