O fim da vergonha

Chegamos ao nacionalismo, ao patriotismo, à xenofobia, à irremediável falta de liberdade, muito depressa

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Len dela Cruz/Unsplash

Qual foi o momento exato na história recente em que deixamos de ter vergonha? Nesse momento, seja ele qual for, decidimos sair da zona neutra e começar a deixar que os extremos ganhassem força, que as posições de ódio se tornassem mais frequentemente declaradas. Donald Trump, Janusz Korwin-Mikke, Geert Wilders, Jeroen Dijsselbloem. Parece que nos esquecemos do que é ter vergonha: vergonha de dizer barbaridades, de concordar com crueldades, de virar as costas à evolução, à igualdade e à humanidade. Esquecemo-nos de fazer jus à memória do que a história fez questão de ensinar.

Entramos no século XXI marcados pela negritude do reconhecimento de um colapso ético e moral irreparável. Vimos de um século XX estilhaçado e, para sempre, marcado pela dor e pela mediocridade dos argumentos e dos atos com fundos vazios de intelectualidade e empatia. Adolf Hitler, Joseph Stalin, Mao Tsé Tung, Saddam Hussein. A incapacidade de distinguir o bem do mal originou uma catástrofe humana e ideológica monumental. Ficamos marcados com profundas cicatrizes de tempos manchados de sangue, e com o desejo de que tivéssemos feito mais, falado mais, pensado mais. Este sentimento de tristeza, banhado com alguma culpa, impediu-nos de proferir e aceitar discursos de ódio e injustiça. Prestamos homenagens em santuários de arrependimento, de lições aprendidas e consciência de responsabilidade moral. Muitas lágrimas correram e marcaram testemunhos da crueldade, morticínio e retrocesso cultural vividos nestes tempos de não-memória.

Neste estado de limbo moral estabelecemos limites que pensamos impossíveis de ultrapassar numa Europa unida e desenvolvida, ou numa mega-nação como os Estados Unidos da América. Até hoje, restou a vergonha dos nossos atos, da falta de limites, da miséria espiritual e da ignorância, ficamos com vergonha de uma essência distorcida. Até agora as pessoas sabiam as lições de cor, usavam-nas como referência do pior que podemos ser, afastaram-se do ódio, da exclusão e da desigualdade porque quando olhassem em volta poderia ser tarde de mais. Há pontos de não-regresso. Até agora não era aceitável pública, pessoal ou diplomaticamente exteriorizar qualquer sentimento de ostracismo, racismo, machismo. E agora? Agora veio a revolta, a falta de humanidade, o desespero. Esquecemo-nos de onde viemos e os caminhos que pisamos com vidas acorrentadas e arrastadas pela lama.

Agora os discursos mudaram. Algures, nesta superfície de gelo, abriu-se uma fenda e alguém atirou a primeira pedra. Chegamos ao nacionalismo, ao patriotismo, à xenofobia, à irremediável falta de liberdade, muito depressa. Houve um tempo em que estas manifestações de ódio estavam fechadas em garagens ou em pavilhões alugados sem recibo. Agora não. Há sessenta anos estávamos a recuperar da estalada de tragédias eternas e incontornáveis. O tempo e as consequências esfregaram-nos na cara a podridão que vem desde as entranhas. Mas fizeram-se esforços para não repetir um retorno ao fim do tempo e do ser humano. Tentaram estabelecer-se valores comuns, criaram-se laços e entendimentos pela harmonia da convivência pacífica e conjunta, puseram-se os direitos humanos num pedestal e lutou-se pela paz, pela democracia e pela liberdade. Por isso, o ódio ficou guardado, submisso e mascarado.

O desespero faz mudar os ponteiros das bússolas mentais: a fome, o desemprego, a falta de qualidade de vida, a miséria, o dinheiro. O desespero leva a que se apresentem argumentos que se escondem atrás de razões (falsamente) humanas, primárias. O desespero faz com que seja justificável aceitar teorias que esmagam por completo a estrutura ideológica, moral e ética construída até hoje. Mesmo que, no fundo, saibamos que estamos a voltar aos lugares que não queremos regressar. Vamos remexer estes lugares de não-memórias e almas esquecidas e não há perdão. Não há justificação, não há razão para o que se está a desenrolar. Deixamos de ter vergonha, e isso vai ser o nosso fim.

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