Não foi nada disto que nós combinámos
Um livro com humor, orgulho da mata e esperança, escrito por um homem cuja voz chegou a ser omnipresente em Angola – o comandante Juju. O antigo porta-voz das FAPLA, é hoje simplesmente Júlio de Almeida, integrante da geração da utopia que ficciona algum do seu desencanto sem cair na amargura.
Tempos houve em que a voz do comandante Juju se propagava por Angola e o seu nome era reconhecido por quase todos. Mesmo sem lhe perceberem a fisionomia, a voz que lia os comunicados do estado da guerra às oito da noite, antes das notícias, ganhou grau de reconhecimento, entre o MPLA, mas também na UNITA e na FNLA.
Em Mais um dia de vida, o polaco Ryszard Kapuscinski fala desses comunicados que “soam grandiosos, porque Juju dá tudo por tudo neles”, chorando um herói tombado na frente de guerra ou celebrando uma conquista no terreno.
Júlio de Almeida (o verdadeiro nome do comandante Juju) garante que era um “trabalho voluntário” feito “com alma e coração”, um “acto de mobilização” que, não sendo noticioso, tinha de “ter credibilidade”. Era um relato ficcionado da guerra com fundo de verdade.
Um lado de ficcionista partilhado com Kapuscinski, dado, também ele, a romancear a realidade. “Mais um dia de vida” tem “partes que não foram bem assim” porque o polaco “não era um jornalista que gostava de relatar os factos nus e crus”, diz Júlio de Almeida, regressado do recatado anonimato autoimposto (desde que deixou de ser deputado em 2002) para falar de Vaicomdeus, SARL, livro agora editado em Portugal.
A voz pode enganar e o corpo pequeno e magro do comandante Juju redimensionava-se, agigantava-se na imaginação dos ouvintes que faziam corresponder a gesta heroica dos comunicados à pessoa que os lia. Chamavam-lhe Chefe do Estado-Maior, super-comandante e até mesmo Che Guevara angolano.
“Havia pessoas que ainda falavam (e falam) do comandante Juju sem saber quem ele é fisicamente. Isso pode ser bem interessante”, refere o filho, o escritor Ondjaki – de seu verdadeiro nome Ndalu de Almeida.
Para as novas gerações, o nome do comandante Juju nada representa hoje em dia; popular é o filho “e ainda bem”, garante Júlio de Almeida. É essa fé na mudança de gerações que lhe permite “continuar a ser optimista” porque, “além de nós, há muitas coisas e muitas outras virão”.
“A geração que fez a luta está em vias de extinção. Quer queira, quer não, vai acabar, mas o país não vai acabar. A estas novas gerações que lhes interessa o colonialismo, interessam-lhes é como vão sobreviver amanhã”, acrescenta.
Optimismo e fé na mudança de gerações muito presentes em “Vaicomdeus, SARL”, um livro que apesar de nascer do desencanto de um país que não corresponde aos ideais da mata, da luta armada, que não honra os que caíram (o livro está dedicado a dois antigos comandantes do MPLA, Gika, tombado em combate; e Dilolwo, que se suicidou depois), que se embrenha na corrupção e no tráfico de influências, recusa, no entanto, o desânimo.
Eugénio, um dos dois protagonistas (aquele que no livro carrega alguns dos traços autobiográficos), escolhe uma vida recatada e modesta depois de 12 anos de guerrilha e olha de fora o estado das coisas, vai vivendo com as suas aulas domiciliares de Matemática, num claro contributo para a educação das novas gerações, orgulhoso do seu passado na luta, desiludido pelo presente sem se deixar cair na amargura.
Geração da utopia
Eugénio, como Júlio de Almeida, como Gika, como Dilolwo, pertencem todos à “geração da utopia”, os que sonharam na luta armada a independência do país. Tal como Pepetela, que cunhou a expressão no seu romance A Geração da Utopia e que na edição portuguesa (Caminho) de Vaicomdeus, SARL (o original saiu em 2002 em Angola pela Chá de Caxinde e há uma edição brasileira para sair em 2018) assina o prefácio.
Escreve Pepetela que “a verve satírica” de Júlio de Almeida “vem constantemente ao de cima”, neste livro que tem como característica importante “o falar de coisas sérias, dramáticas mesmo, mas sem perder nunca a qualidade estratégica número um para a sobrevivência do angolano, a capacidade de rir das próprias desgraças”.
“É um bocado presunção da minha parte – diz Júlio de Almeida –, mas eu entendo que uma obra de ficção deve levar alguma reflexão, mas não aquela reflexão animalesca em que a gente fica chateado de estar a ler o livro. Por todo este livro perpassa também um fio de humor em quase todas as situações. O Pepetela diz que é característica dos angolanos – rir das coisas sérias. Acho que dá uma outra força quando nós somos capazes de rir das coisas sérias.”
Para Ondjaki, o livro do pai “dialoga muito” com a A Geração da Utopia, mesmo sendo histórias diferentes. “Ao mesmo tempo que nos dá uma lição sobre a história da Luta”, escreve Pepetela, “apresenta-nos um par de personagens que resumem as diferenças existentes entre o que de melhor há no angolano, o que é feito para vencer e o que é feito para perder”. No fundo uma síntese de Angola, um país “todo feito para se entender, mas de entendimento sempre adiado”.
A história dos primeiros 30 anos do país (o livro está ambientado em 1999) é contada a partir do diálogo entre Eugénio e Cecília, conhecida por Sissy, que tem a idade do país, sem pai, nem mãe e que se reinventa empresária numa agência funerária de serviço completo, construída com base numa empresa pública falida. Entre os dois, cujos caminhos se cruzaram no Leste do Angola sem nunca se tocarem, nasce uma história de amor tão efémera quanto esperançosa.
“Destas duas personagens do livro, há uma que não consegue dar o salto. Inadaptada, presa às suas memórias, presa às suas vivências, aos seus sonhos, talvez pela idade. E uma personagem feminina que é, para mim, a personagem deste livro; de certo modo, até pela sua experiência de vida, personifica um pouco o que é o país. Essa não está já para morrer, tem toda a vida à sua frente e se adapta”, explica o autor.
Tal como o MPLA foi um partido marxista-leninista por imposição externa e aproveitamento interno (“limaram o movimento para fazer o partido, marxistas havia alguns, mas não eram muitos”, explica Júlio de Almeida), rapidamente se libertou do espartilho ideológico quando a União Soviética se desagregou e adoptou a cartilha mais ortodoxa do capitalismo, a do lucro acima de tudo.
“E tanto não havia marxistas-leninistas que quando se adoptou a economia de mercado, o multipartidarismo, toda essa malta foi casar pela Igreja”, conta entre risos o autor que, aos 77 anos, ainda vai trabalhar todas as manhãs na empresa de construção Jonce, onde é “assim como uma espécie de referência moral da administração”.
Esse trabalho permite-lhe continuar a contribuir para a construção da sociedade, não desistindo dela, mesmo com o desânimo das maleitas. Criar postos de trabalho (e a Jonce emprega quase mil), garantir eficiência, respeitar os materiais e os clientes, eis como se pode cumprir o interessante papel de “servir assim de contraponto”.
Contraponto a uma forma de existência onde é difícil ser verdadeiro, onde falta respeito pelo outro. Que vai desde o peão a atravessar a estrada, até ao cliente enganado pela empresa, passando pela exclusão social de uma parte substancial da população.
“Há uma frase muito vulgarizada, especialmente entre os antigos, que fizeram o percurso da independência, que diz ‘não foi nada disto que nós combinámos’. Há uma certa decepção por não se ter atingido determinados objectivos. Talvez não fossem atingíveis, talvez baste a luta pela libertação”, reflecte o autor.
O certo, agora, tão certo como tudo ter valido a pena, mesmo com os erros e os desvios, é que chegou a altura da geração da utopia se retirar. Manter-se como reserva moral (“um pequeno exército, cada vez mais pequenino porque as pessoas vão morrendo”) que pudesse ser aproveitada de vez em quanto, mas dando lugar aos outros, aos mais jovens.
E conclui: “Devíamos fazer um fórum, não é um asilo, onde pudesse ser aproveitada a nossa experiência sem estarmos activos, a arrastar uma data de traumas, uma data de experiências que hoje já não são reais. Deixar esta gente da minha geração ainda nas rédeas de tudo, não é correcto”.