Ministério Público arquivou lista VIP sem ouvir dirigentes envolvidos

Nem o ex-director-geral do fisco, nem o número “dois” que aprovou o polémico sistema de alerta foram inquiridos. Ministério Público centrou processo em saber se houve violação da protecção de dados.

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O ex-director-geral da AT, António Brigas Afonso, e o ex-subdirector, José Maria Pires, são visados pela IGF Miguel Manso

O inquérito à lista VIP do fisco que durante alguns meses de 2014 e 2015 permitiu saber quem consultava os dados fiscais de um grupo restrito de quatro cidadãos – Pedro Passos Coelho, Paulo Portas, Paulo Núncio e Cavaco Silva – foi arquivado a 8 de Fevereiro no Departamento de Investigação e Acção Penal de Lisboa (DIAP) de Lisboa sem que o Ministério Público (MP) tenha inquirido todos os funcionários e dirigentes do fisco que estiveram directa ou indirectamente envolvidos na criação deste sistema de alerta.

A polémica bolsa VIP foi um mecanismo configurado e testado na área da segurança informática da administração tributária para identificar quem acedia à informação onde aparecesse o Número de Identificação Fiscal (NIF) dos quatro políticos.

Já se sabia que o Ministério Público tinha a correr um inquérito para apurar a eventual prática de ilícitos criminais relacionados com o caso, mas não se conhecia o que estava a ser investigado em concreto.

Só com o despacho final de arquivamento em mãos, cujo processo e os anexos o PÚBLICO consultou no DIAP, se percebe que a linha da investigação do Ministério Público se cingiu a apurar se haveria crimes relacionados com a violação da protecção de dados – de “violação de segredo, acesso ilegítimo qualificado”, de incumprimento de “obrigações relativas a protecção de dados, de acesso indevido e de violação do dever de sigilo”. Além destes, apenas foi averiguada a “eventual danificação de documento e falsidade de testemunho”.

Tudo acabou arquivado por falta de prova. Um desfecho que surge quase dois anos depois de a Inspecção-geral de Finanças (IGF) ter concluído, logo em Maio de 2015, que os quatro funcionários e dirigentes envolvidos na “definição, aprovação e implementação” da lista VIP violaram deveres da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas por actos “susceptíveis de integrar diferentes ilícitos, graus de culpa e de censura”. A lista VIP, considerava a IGF, foi uma medida “arbitrária e discriminatória”, lançada “sem [haver] fundamentação, de facto e de direito, dos motivos e dos critérios para o tratamento específico e privilegiado” das informações fiscais de Passos, Portas, Núncio e Cavaco.

Apurar se a criação desta bolsa restrita de contribuintes foi uma decisão discriminatória ou se era, ou não, adequada para dissuadir acessos indevidos são considerações que a procuradora adjunta responsável pelo processo considera “que extrapolam o âmbito do presente inquérito, em que se aprecia a existência de indícios de crime”.

O MP concluiu não haver prova que conduzisse “à fundada suspeita da prática de um qualquer crime”. E pela mesma razão não constituiu arguidos. “Nem se vislumbra, nas circunstâncias, que outras diligências a tal pudessem conduzir”.

Depoimentos incongruentes

Certo é que dos quatro trabalhadores e dirigentes do fisco em relação aos quais a IGF recomendou a instauração de procedimentos disciplinares, o Ministério Público apenas ouviu um: José Morujão Oliveira, o chefe de equipa da área de segurança informática, apontado pela inspecção de Finanças como o funcionário que teve a iniciativa de implementar a lista e seleccionar os quatro NIF a monitorizar.

Não foram ouvidos pelo MP nem a coordenadora dos sistemas de informação, Graciosa Martins Delgado (superior hierárquica de Morujão Oliveira), nem os dois dirigentes envolvidos. Ficaram por inquirir o subdirector-geral da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) que aprovou a lista VIP, José Maria Pires, e o próprio António Brigas Afonso, então director-geral.

Morujão Oliveira, Graciosa Delgado, José Maria Pires e Brigas Afonso são os quatro visados pela IGF como tendo sido responsáveis pela implementação da lista e em relação aos quais a inspecção recomenda a instauração de processos disciplinares.

Além de Morujão, o Ministério Público só inquiriu mais uma pessoa (o funcionário Pedro Portugal, auditor na direcção de serviços de auditoria interna do fisco, mas que não surge visado pela IGF como tendo tido responsabilidades).

O MP recebeu os áudios e as actas das audições parlamentares sobre o caso (entre eles, de José Maria Pires, Brigas Afonso e Paulo Núncio), bem como os autos das declarações prestadas à IGF, mas no despacho final não cita informação além do que está nas conclusões dessa auditoria.

O próprio MP diz que a Comissão Nacional de Protecção de Dados (a primeira entidade a debruçar-se sobre a lista VIP) teve “dificuldade na obtenção de prova, com depoimentos incongruentes de alguns dos intervenientes, no caso José Morujão Oliveira e Graciosa Martins Delgado”. Havia matéria a esclarecer. Mas Graciosa Delgado também não foi ouvida no DIAP. Defende o MP que naquela fase (do relatório da CNPD) não foram recolhidas declarações formais. E nem Morujão nem Graciosa Delgado assumiram a “qualidade formal de testemunhas”. Por isso justifica: “Mesmo que fossem chamados a depor [ao MP] na qualidade de testemunhas, não seriam, de todo o modo, obrigados a responder a questões das quais pudesse resultar a sua responsabilização penal”.

O subdirector-geral José Maria Pires, que na ausência de Brigas Afonso era o seu substituto legal, foi quem autorizou o funcionamento da lista VIP. Teve, segundo a IGF, uma “intervenção decisiva no processo de implementação” do sistema alarmístico, mas também não foi inquirido. Já Brigas Afonso, embora não tenha intervindo directamente na decisão de criar a lista, teve conhecimento do seu teor “através de conversas” com o seu subdirector-geral José Maria Pires. Algo que também não aparece referido no despacho do MP, que também não ouviu o então responsável máximo do fisco.

O processo está arquivado, mas o Sindicato dos Trabalhadores dos Impostos (STI) insiste que há questões por esclarecer e à Visão o presidente Paulo Ralha afirmou que teria “informações a dar” ao MP se tivesse sido ouvido.

Com a investigação do MP pouco mais se ficou a saber em relação às conclusões da CNPD e da IGF. Durante mais de cinco meses, sempre que havia acesso a informações fiscais de Passos, Portas, Núncio e Cavaco, o sistema automático gerava alertas de quatro em quatro horas. Assim aconteceu de 29 de Setembro de 2014 a 10 de Março de 2015. A denúncia de processos de averiguação a quem acedera aos dados fiscais estala na imprensa. O sistema acaba por ser cancelado.

Enquanto funcionava, era o coordenador de serviços na área de segurança informática, José Morujão Oliveira, quem recebia no seu email as mensagens de “alerta” (o que aconteceu 228 vezes). Primeiro só faziam parte da lista VIP Cavaco, Passos e Porta, e só mais tarde surge um “alerta” de acesso a dados de Paulo Núncio.

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