A cimeira das Lajes revisitada: um caso de “memória selectiva”?
A biografia de Jorge Sampaio revela uma nova interpretação sobre a forma como Durão Barroso geriu a informação sobre a guerra no Iraque com o Presidente.
É uma das vantagens do tempo: pôr os factos em perspectiva. Passaram-se quase 15 anos desde o maior braço de ferro entre o Presidente Jorge Sampaio e o primeiro-ministro Durão Barroso, em que ambos testaram os limites da sua confiança recíproca. A tensão durou quase dois anos, os últimos de Barroso à frente do Governo. E envolveu “malandrices”, assessores diplomáticos “furiosos”, receios de “chinfrim” e uma dúvida que ainda persiste: Barroso avisou Sampaio da Cimeira das Lajes – que ditaria o momento-zero da guerra no Iraque – logo quando soube, ou só quando esta já era um “facto consumado”?
Se estamos, agora, a revisitar factos novos sobre esse momento histórico, devemo-lo à investigação do jornalista José Pedro Castanheira, que acaba de publicar o segundo volume da biografia de Jorge Sampaio O Presidente (Porto Editora). O caso das Lajes ocupa apenas 40 das 1063 páginas do livro, que vai ser lançado no próximo dia 7 de Abril, em Lisboa. Mas o detalhe alcançado pelo biógrafo – que cita as notas pessoais de Sampaio das várias conversas e reuniões que manteve, além dos vários documentos arquivados pela equipa do Presidente, e reconstitui os principais momentos com recurso aos testemunhos de vários protagonistas – apresenta algumas novidades sobre a forma como a cimeira, e a guerra, minaram a relação de confiança entre os dois órgãos de soberania.
A prova da sensibilidade contida nas revelações da biografia chegou numa nota escrita por Durão Barroso, e enviada à Agência Lusa, em que o ex-primeiro-ministro (e actual chairman do banco Goldman Sachs International) refuta uma das interpretações do livro. Barroso garante que é "absolutamente falso" que o antigo Presidente da República tenha sido "o último a saber" da Cimeira das Lajes, realizada em 16 de Março de 2003. "O meu contacto com o Presidente da República deu-se quase imediatamente, por telefone, após telefonema que recebi de Aznar [antigo primeiro-ministro espanhol], solicitando-me que se realizasse em Portugal a reunião com o Presidente dos EUA [George W. Bush] e o primeiro-ministro do Reino Unido [Tony Blair]". "O então Presidente, Jorge Sampaio, não só não foi o último a saber, foi na realidade a primeira a pessoa a saber e mesmo a única entidade que eu consultei antes da decisão tomada", garante Barroso.
Numa coisa parece haver acordo entre as duas versões da história: Barroso avisou Sampaio de que iria receber Bush, Blair e Aznar, na ilha Terceira, nos Açores, com 48 horas de antecedência. O anúncio foi feito em Belém, numa reunião que terminou antes das 9 horas da manhã de dia 14, depois de o primeiro-ministro ter telefonado para casa do Presidente a pedir o encontro.
A partir daqui a biografia conta uma história diferente da de Barroso. “A cimeira já estava decidida há vários dias. Sabe-se que um presidente americano precisa pelo menos de 72 horas para poder levantar voo – é quanto demoram os preparativos de toda a logística presidencial. O que significa que a decisão estava perfeitamente assumida há vários dias”, explica o embaixador Moraes Cabral, na altura Chefe da Casa Civil de Sampaio. “Não me custa a acreditar que, desde dia 5, quando falou ao telefone com George Bush. Barroso tivesse logo disponibilizado as Lajes e reiterado o mesmo de seguida a Blair, quer por telefone quer pessoalmente, pois visitou-o em Londres a 11. Ou seja, inclino-me para que as Lajes estivessem na mente de Barroso onze dias antes da realização da cimeira”, declara no livro o autor do livro A Cimeira das Lajes…, Bernardo Pires de Lima.
O resultado foi um entendimento generalizado entre a equipa de assessores do Presidente: “Barroso fez várias malandrices a Sampaio, e a cimeira foi uma delas” (José Manuel dos Santos, assessor político, pág. 939); "O Presidente foi avisado de que ia haver uma cimeira em território nacional duas ou três horas antes de ser anunciada oficialmente. Fiquei furioso!" (Bernardo Futsher Pereira, assessor diplomático, pág. 935).
Esta não é a primeira vez, no passado recente, que as Lajes motivam uma troca de argumentos entre Sampaio e Barroso. Há um ano, após uma entrevista de Barroso ao Expresso em que este afirmara que Sampaio “concordou” com a cimeira das Lajes, o ex-Presidente escreveu no PÚBLICO um artigo sobre os riscos da “memória selectiva” onde assumia uma “divergência” de fundo com o primeiro-ministro sobre o Iraque.
Essa era a divergência de fundo, que o livro detalha em pormenor. A cimeira só não aconteceu nas Bermudas porque Aznar argumentou que "em Espanha o nome dessas ilhas está associado a uma peça de roupa que não era exactamente a mais adequada perante a gravidade do momento" (pág. 936). Sampaio procurou moderar o entusiasmo do Governo, que pretendia capitalizar a aproximação com os EUA, num contexto de divisão europeia (França e Alemanha opunham-se à guerra). E conseguiu, entre outras coisas, que a posição de Portugal se mantivesse associada à “legalidade” internacional e menos alinhada com o conceito de acção “unilateral”.