Ninguém corre sozinho contra a esclerose múltipla

Ramón Arroyo tem esclerose múltipla mas conseguiu fazer várias provas de fogo do desporto como o Ironman. Diz que não é nem um "homem de ferro", nem um super-herói. De passagem por Portugal para promover um filme inspirado no seu caso, revela como lida emocionalmente com a doença

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Rámon Arroyo esteve ontem em Lisboa para falar sobre o filme 100 Metros inspirado no seu caso Nuno Ferreira Santos

O espanhol Ramón Arroyo conseguiu o que parece impossível. Diagnosticado com esclerose múltipla em 2004, fez o que muitas pessoas sem limitações físicas não conseguiriam fazer. Completou uma das provas difíceis de desporto, o Ironman, modalidade de triatlo que consiste em 3,8 quilómetros de natação, outros 180 de ciclismo e 42,195 quilómetros de corrida (foi em 2013, em Barcelona). 

Mas não é tudo: tem ainda no “currículo” quatro maratonas de 42 quilómetros, oito triatlo, cinco Half Ironman e 16 meias maratonas.

Uma semana depois de ter estado no hospital a fazer um tratamento que espera ter por agora controlado a doença, Ramón Arroyo, chegou a Lisboa para promover o filme 100 Metros, de Marcel Barrena, que estreia dia 30. “Quando fiz o Ironman, a esclerose múltipla estava controlada, mas depois sofri algumas recaídas e tenho estado parado”, contou nesta segunda-feira ao PÚBLICO num hotel em Lisboa. 

Quem olha para este homem, nascido em 1971, não nota qualquer limitação física. Caminha normalmente. Estende a mão para cumprimentar. A sua família é de Huelva, embora ele viva em Madrid, por isso conhece Portugal, sobretudo o Sul.  

O projecto do filme nasceu ao mesmo tempo que o livro Render-se Não é Opção, onde fala da sua história, mas não é uma adaptação deste. O filme 100 Metros é apenas inspirado na sua vida, faz uma mistura de realidade e ficção que ele prefere não revelar.

Rámon Arroyo também nunca revela que tratamento faz pois o que funciona para ele, pode não funcionar para outros, diz. Tem consciência de que o facto de o mencionar pode ter impacto e levar doentes a dizer: “Quero o tratamento do Ironman”. 

Segundo a Sociedade Portuguesa de Esclerose Múltipla, esta é uma doença crónica, inflamatória e degenerativa, que afecta o Sistema Nervoso Central. Surge normalmente entre os 20 e os 40 anos e afecta com maior incidência as mulheres. Em Portugal haverá cerca de 8 mil doentes, acrescenta esta organização, que lembra que a nível mundial os números andam pelos 2,5 milhões. Tem diversos espectros e muitas vezes os sintomas confundem-se com outras doenças. 

Contactado várias vezes por dia por pessoas com diversas doenças, Ramón Arroyo tenta explicar-lhes que todos temos Esclerose Múltipla: “Não tem cura, e todos os dias vai-se perdendo capacidades. Isso é a vida real. Envelhecemos. Vamos todos acabar no mesmo sítio. Quando percebemos que não somos imortais, então pomos a vida em ordem. Muita gente talvez não tenha passado por esclerose múltipla mas já passou por algo importante. Costumo dizer que todos têm o seu Ironman, as suas maratonas. Podemos não falar de quilómetros, mas quem estudou, trabalhou no duro, passou por essas provas.”

Doença desconhecida

Seja como for, esta é uma doença sobre a qual existe um enorme desconhecimento, lembra. Um dos seus objectivos era normalizá-la. Superar as provas físicas era uma forma de o fazer. “É uma doença muito impopular, desconhecida, e 50 % das pessoas não a revela a ninguém que a tem. Acho que é obrigação de quem tem esclerose múltipla esclarecer sobre o que é a doença, que não é agradável. Um amigo com diabetes não tem problemas nenhuns em dizer que tem diabetes, porque é uma doença normalizada.”  

Depois de um período em que teve que ficar parado por causa da doença, Ramón Arroyo já está a pensar em provas de triatlo. Nunca deixa de ter objectivos, nem de pensar em provas. O triatlo é muito bom para quem tem esclerose múltipla porque é “muito completo”, e muito bom “para a saúde”: trabalha várias partes do corpo e em diversos tempos. “Qual a distância que vou completar? Não sei. Isso é viver com esclerose múltipla, uma absoluta incógnita sobre o que vai acontecer amanhã. A esclerose múltipla é a incerteza múltipla. Planear é sempre complicado.” 

Neste período em que não conseguiu fazer desporto, ganhou imenso peso, mas acha-se um sortudo porque esteve a colaborar no filme, e isso ajudou-o a sentir-se útil. Parece incrível como é que alguém que não conseguia andar, correr, nadar nestes últimos dois anos está em forma, aparentemente. “O objectivo agora é correr 10 quilómetros. Neste momento corro 5 ou 6, o que parece imenso para muita gente”, mas, afirma,  “não é nada” para quem “já correu” o que ele correu.

Não é que o tempo, no caso de Ramón Arroyo, interesse, mas a sua melhor performance em corrida, nos 42 quilómetros da maratona, foram 3 horas e 52 minutos. Isto cinco anos depois de lhe ter sido diagnosticada a doença. 

Terapia é essencial

Tem a sorte de ter “uma equipa” fantástica, que vai além da família nuclear, cuja base é a “melhor mulher do mundo”, os dois filhos e os pais. Isso ajuda-o muito a lidar emocionalmente com a doença. “Talvez tenho feito alguma coisa para os ter juntos”, ri-se. “Mas vou também à terapia física e psicológica todas as semanas.” O que é absolutamente essencial, afirma: “Lidar com a esclerose múltipla sozinho é impossível. Absolutamente impossível”, afirma. “É sempre preciso a ajuda de alguém. Porque isto é muito forte. Receber o diagnóstico muda completamente a vida. Não quer dizer que seja para pior, mas tudo muda, a escala de valores muda.”

Ramóno Arroyo não se esquece, “obviamente”, do dia em que lhe foi diagnosticado: 14 de Agosto de 2004, estava ele com a então namorada, agora mulher, no Sul de Espanha, de férias. Sentiu-se cansado e começou a ter dificuldade em encher um copo com Coca-Cola, tremia. Ao fim de algumas horas, as limitações aumentaram e estenderam-se ao ombro, até paralisar totalmente o lado direito do corpo. Foi a um centro de saúde, e disseram-lhe para consultar um neurologista, quando chegasse a Madrid. Assim fez. O primeiro diagnóstico foi um Acidente Vascular Cerebral (AVC). “Não sou médico, mas tinha 32 anos e pensei que não era normal para aquela idade. Quando estava a recuperar tive outro surto e nessa altura o médico disse-me que não tinha tido um AVC mas sim esclerose múltipla.” 

Nada sabia sobre a doença, começou a pesquisar. Uma noite estava a passear por casa com insónia e sentiu que, em vez de tomar conta do filho, bebé, precisava era que o filho tomasse conta dele. Teve uma imagem, sentiu que o filho lhe estava a dar a mão e que isso era um sinal. “Percebi que não era culpado por ter esclerose múltipla mas era culpado pela forma como lidava com a doença. E claro que o bebé não era responsável e que é a minha responsabilidade ser feliz.”

Foi então ouvir toda a gente à sua volta, consultar bons médicos e perceber  o que podia fazer. Tinha 150 quilos, não praticava desporto até então. Lembra-se de ter perguntado ao médico o que podia fazer. E de ouvir: “Não pode fazer nada para controlar a doença.” E que tal correr um bocado, será que conseguiria?, perguntou. “Nunca será capaz de correr mais de 100 metros”, respondeu o médico. Foi incentivado por outros a tentar. E a pouco e pouco conseguiu correr 10 quilómetros. Quando deu por isso, estava a fazer o Ironman.  

Mas afinal, o que é que Rámon Arroyo tem de diferente de outras pessoas? “Muito honestamente, não acredito que tenha alguma coisa de diferente. Sou uma pessoa normal: tenho que pagar as contas todos os dias, fico cansado, zangado. Não me sinto um homem de ferro, um super-herói. De modo nenhum”, responde.

Ao longo de todos estes anos, o homem que já tentou e falhou muitas vezes passou por momentos em que a sua cabeça pensava uma coisa e o corpo respondia o contrário. Lida com isso assim: “Com aceitação. É uma questão de aceitar as minhas limitações. Uma vez que aceitamos as limitações, que aceitamos que temos fragilidades e que não somos super-heróis, então conhecemo-nos a nós próprios., conhecemos as nossas limitações, e as nossas forças. E podemos concentrar o nosso esforço a tirar partido das nossas forças e não a confiar nas nossas debilidades.”  

Há uma receita infalível, que tenta sempre usar: sentido de humor. Esse, sim, é “o melhor remédio de todos”. 

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