O mundo visto através dos acordes de guitarra

Os veteranos The Feelies, os contemporâneos Real Estate e a novata Vagabon em três álbuns onde as guitarras são o centro da acção.

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Real Estate Shawn Brackbill
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The Feelies
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Vagabon

Uma leitura possível, e como todas elas redutoras, da realidade musical mais empolgante das últimas décadas: foram anos de linhas de baixo, de secções rítmicas, de fisicalidade, de mestiçagens e de impulsos electrónicos. Calma. Não significa que as guitarras tivessem passado a segundo plano, até porque regularmente há fenómenos de retorno, mas sofreram um embate competitivo como nunca antes tinham conhecido.

Há dez anos parecia que as plataformas de música na internet e a blogosfera apenas estavam interessadas em bandas de guitarras do  universo indie-rock. Hoje esse predomínio é contrabalançado por outras tipologias. E no entanto este início de 2017 tem revelado algumas estreias prometedoras nessa linhagem, como os álbuns da americana Melina Duterte, ou seja Jay Som, com o título Everybody Works, ou dos também americanos Priests, com Nothing Feels Natural, e, principalmente, de Laetitia Tamko, ou seja Vagabon, com Infinite Worlds.

Curioso é o facto de estes acontecimentos sucederem numa altura em que se assinalam os 50 anos sobre a edição de Velvet Underground & Nico, o álbum inaugural dos Velvet Underground, um dos discos mais importantes para se entender na plenitude a história das últimas décadas da música popular em todas as suas vertentes e em particular do indie-rock. Muitos outros, na época, dos Beatles aos Stones, de Dylan a Cohen, terão tido mais sucesso popular ou impacto junto dos melómanos. Mas nem sempre são esses que se revelam decisivos enquanto influência.

Existem obras assim. Parecem estilhaçadas em tudo o que acontece depois. Servem de farol. Iluminam o que haverá de vir, apesar de no período em que foram lançados poucos tivessem antevisto esse efeito. Curiosamente, nos anos 1980, uma discreta banda de Nova Jérsia, os The Feelies, também eles influenciados pelos Velvet, haveriam de lançar outro desses registos que viriam a marcar alguma da música vindoura mais vital que ouvimos ainda hoje. Com Crazy Rhythms, lançado em 1980, estreavam-se em grande, com um álbum que expunha romance, nervo, melodias maníacas, trepidação e ruído, servido por duas guitarras e vozes soltas (de Bill Million e Glenn Mercer). O disco, que foi sendo citado ao longo dos anos como uma grande influência por uma série de outras bandas (dos R.E.M. aos The Pavement) revelou-se um insucesso comercial mas a sua sombra não mais deixou de pairar sobre o que foi sendo feito.

Desde esse disco o grupo viria a lançar mais quatro álbuns, mas nunca mais acertou o passo com a relevância desse gesto inaugural, apesar de Only Life (1988) ou Time For a Witness (1991) serem registos acima da média. O mesmo sucedendo, aliás, com o novo In Between, o primeiro álbum de estúdio do quinteto dos últimos seis anos, produzido pelos dois membros que constituem o centro nevrálgico do grupo – as guitarras e vozes de Million e Mercer. É talvez o disco onde mais se aproximam de The Good Earth (1986), o seu segundo álbum, que de alguma forma constituía uma reacção ao disco inaugural. Era uma obra de canções mais tranquilas, relaxadas e acústicas do que a estreia.

Em 2011, quando lançaram o seu primeiro álbum em vinte anos (Here Before), pareciam indecisos entre retomarem a energia contagiante de Crazy Rhythms ou rumarem para uma linha mais melódica, com um design sonoro global mais elaborado. Agora optam pela segunda hipótese sem grandes hesitações. E fica-lhes bem a preferência, com uma sonoridade que consegue ser tão precisa e intensa quanto aprimorada e envolvente. E conseguem-no com à vontade, sem grande esforço, com a guitarra acústica mais proeminente em alguns temas por entre as movimentações rítmicas menos hiperactivas do que no passado e o empenhamento das vozes charmosas envolvidas por harmonias.  

É um disco visto através da janela de um carro em movimento, com as imagens caleidoscópicas a passarem-nos rápidas pelo horizonte, mas o sentimento geral é de serenidade, como se o quinteto soubesse que o destino está mesmo ali ao virar da esquina. Já não têm de provar nada a si próprios e aos outros. Pesquisam ritmos, texturas e guitarras distintas com maior liberdade e isso basta-lhes para criarem canções expressivas com subtileza, mais de quarenta anos depois do início.  

Uma das bandas que mais tem reflectido a influência dos Feelies são os Real Estate, curiosamente também de Nova Jérsia. Isso era visível em Atlas, o excelente álbum de 2014, e volta a sê-lo no novo registo. Pensou-se que a saída do segundo guitarrista – Matt Mondanile, para se focar nos Ducktails – e grande responsável pelas melodias transcendentes do grupo, poderiam deitar tudo a perder, mas isso está longe de acontecer. A essência sonora do grupo mantém-se intacta, com a voz voluptuosa de Martin Courtney, circundada pela gentil e propulsiva secção rítmica e a guitarra distintiva do novo membro, Julian Lynch, a manter intactas as propriedades sónicas. É quase como se a guitarra falasse e servisse de co-narradora à voz.

São onze canções elegantemente imaculadas, sempre com muito espaço, povoadas pelas cascatas de guitarras – pensa-se nos Feelies, mas também nos Felt dos primeiros tempos ou em alguns períodos dos Go-Betweens – que nunca submergem a voz, colocando-se ao lado desta, servindo canções sonhadoras povoadas por palavras nostálgicas que tanto evocam o passado como o futuro utópico, como se constituíssem a reconstrução de um sonho tido numa qualquer noite passada.

Os envolvimentos melódicos são perfeitos, o som é cheio mas esparso, as teclas criam segundas melodias e as guitarras são o centro de múltiplas texturas e ambientes, como se nos quisessem convidar a vislumbrar a estrutura transparente das canções. E o que vemos no seu interior é um quinteto que, ao quarto álbum, foi capaz de enriquecer a sua sonoridade, sem perder as suas características mais relevantes.

Tudo isto acontece num tempo onde é relativamente fácil delinear a ascendência do que ouvimos e, por isso, o choque do novo raramente se impõe. Também por isso surpreende a estreia da cantora e multi-instrumentista Laetitia Tamko, a identidade que se esconde por detrás de Vagabon. Não que a nova-iorquina, com origens nos Camarões, tenha algo de radicalmente novo para propor, mas porque sendo a sua música facilmente cartografável consegue soar quase sempre arejada e renovada. Não existem grandes artifícios – uma voz, uma guitarra evocativa sempre em trânsito e uma bateria enxuta – mas os oito temas que por aqui se ouvem são sempre precisos, mesmo quando as variações se fazem sentir no interior de cada uma das canções.

A sua voz tanto pode ser agressiva como relaxada e a guitarra é ondulante ou estridente, muitas vezes no espaço da mesma canção, enquanto ela canta sobre isolamento, relações falhadas ou sentir-se à margem das sociabilidades dominantes. O lastro que fica é francamente estimulante, com Laetitia munida da sua guitarra, às vezes num registo mais recolhido, quase folk, outras vezes impetuosamente rock, como se ela visse o mundo de forma clara através dos acordes da sua guitarra.

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