"Como é que políticos experientes convocam um referendo sobre a UE?”
Os referendos britânico e italiano não fizeram sentido - e o primeiro é um retrocesso civilizacional. Cavaco sobre os "produtos novos" na Europa e também Marine Le Pen.
Cavaco Silva pensa que as negociações do "Brexit" vão ser difíceis, porque será difícil haver uma posição comum dos 27 que ficam. Mais difíceis ainda são, no seu entender, os novos eurocépticos. Mas Le Pen não ganhará, acredita o ex-Presidente.
A saída do Reino Unido da UE é o início de uma desagregação a prazo?
Primeiro sublinho que o Reino Unido não faz parte da zona euro. Apesar das complexidades que a Grã-Bretanha irá enfrentar e a UE também, é muito mais fácil sair-se da UE do que da zona do euro. Penso que o "Brexit" tem custos para o Reino Unido e tem custos também para a UE. Tem custos para o Reino Unido no médio prazo de forma clara, porque mesmo um país grande, neste tempo de globalização, tem dificuldade em fazer ouvir a sua voz e defender os seus interesses na cena internacional. A negociação vai ser difícil, porque os 27 têm interesses a defender e o Reino Unido também. Mas os 27 não devem pensar que é do seu interesse criar instabilidade económica, financeira e social na Grã-Bretanha. Penso que isso é um erro. Agora, o que penso que tem de ser um objectivo é que estejam os 27 unidos para fazer a negociação. E esse é o meu maior receio, que na negociação os 27 não se apresentem de facto unidos. Neste momento, o que marca ainda o "Brexit" é a incerteza.
E para a UE?
Perde um parceiro importante, que tem algumas especificidades únicas. É o que acontece em matéria de serviços financeiros. Todos sabemos que é um dos países mais desenvolvidos na área dos serviços financeiros, e também a capacidade militar. Quando se fala da necessidade de uma política europeia de defesa comum, a Grã-Bretanha tem uma capacidade militar e uma disponibilidade para a utilizar que os outros não têm.
E Portugal?
As nossas exportações de bens para Inglaterra são cerca de 3% do PIB, a exportação de serviços é menos de metade disto, quer dizer que o nosso comércio, incluindo o turismo e a exportação de bens, não deve chegar a 4,5% do PIB, muito menos do que acontece com a Bélgica, com a Irlanda, com a Holanda e com os países bálticos. E mesmo aquilo que se refere à população emigrante, portugueses residentes no Reino Unido, a nossa situação não tem a dimensão que tem outros países. Portanto, Portugal não tem razão para se preocupar mais do que se preocupa a média da UE. Temos de acompanhar a negociação, não tenho dúvidas de que o Governo vai fazê-lo, tentando colocar aquilo que são os nossos interesses específicos no quadro do interesse comum do conjunto. A habilidade negocial de um país não é assumir o seu interesse específico separadamente, dá a ideia de egoísmo e de nacionalismo, mas conseguir integrar-se no interesse do conjunto. Penso que a negociação vai ser muito difícil.
Como viu o referendo?
Sou daqueles que têm alguma dúvida que numa democracia se possa decidir por um voto algo que ponha em causa os avanços institucionais, económicos, sociais alcançados durante décadas e que se lance uma carga muito forte, uma herança pesada sobre a geração futura. Costumo dizer: poder-se-ia decidir por referendo, por um voto, que se vá pôr fim à abolição da pena de morte? Que se deixe de proibir o trabalho de menores, de crianças? Há questões civilizacionais.
Não é comparável.
Eu analisei que grupos votaram pela saída da UE e que votaram por continuar. São as gerações mais velhas que votaram claramente pela saída — que vão desaparecer não daqui a muito tempo.
Está a dizer que a integração europeia é um adquirido civilizacional?
A integração europeia trouxe a paz à Europa, 60 anos de paz. Às vezes esquecemo-nos. Quando eu cheguei a primeiro-ministro e participei nos primeiros conselhos, pensava acima de tudo no contributo que a integração dava para a consolidação da democracia e para o desenvolvimento económico e social de Portugal. Mas constatei, ouvindo os primeiros-ministros, que eles ainda valorizavam muito a paz, porque eles tinham vivido a guerra. O [Helmut] Kohl contava-nos muito o que tinha acontecido na vila onde ele vivia, os bombardeamentos. Tenho por ele uma grande admiração, porque se temos o euro, devemos-lhe a ele.
Pegando na importância que está a dar à paz, isso está ligado à defesa. O Presidente dos EUA, Donald Trump, já assumiu que considera que os EUA não devem continuar a ser eles a garantir a defesa da Europa. Como é que a UE pode e deve evoluir para políticas de segurança comum mais desenvolvidas?
Não vou falar sobre o novo Presidente dos EUA porque ainda não consegui interiorizar de forma racional aquilo que é apresentado como políticas a serem defendidas pelos EUA no futuro, seja em relação a questões de defesa europeia, seja a proteccionismos e outras matérias. Agora, ligando aquilo que disse há pouco sobre a zona euro, eu diria que a questão da defesa — e há uma política de defesa europeia, que coordena com a NATO — é matéria que interessa a todos, aos 27.
E deve ser desenvolvida?
Deve ser desenvolvida. E a Europa, até aqui, confiou demasiado na protecção norte-americana. A Cimeira de Gales da NATO [2014] apontou para que os Estados-membros pelo menos aumentassem as despesas militares para 2% do PIB. Se recuássemos dez anos, o número era 3%, isto é, os americanos estão a chamar a atenção das opiniões públicas europeias para que esta seja uma matéria delas também. Por isso é que se diz que a Europa está envelhecida, não é capaz de investir na sua própria defesa e que confia muito que os outros a protejam. Acho que a Europa tem de pensar que terá de investir mais em despesas de Defesa. Mas se a zona euro estiver fortalecida, penso que é mais fácil também aí, mas não só aí, chegar a entendimentos que cubram os 27.
Que consequências prevê, se Marine Le Pen ganhar as eleições francesas?
Eu não prevejo que ela possa ganhar. Tenho de ser confiante numa situação dessas, os contactos que tenho tido com personalidades que conhecem a política francesa, todos me dizem que ela não vai ganhar.
É uma questão de confiança, é um optimista.
Não concebo uma vitória da sra. Le Pen.
Considera-se um optimista?
Em matéria de sondagens nós devíamos ouvir sabe quem? A Hillary Clinton. Como é que ela perdeu?! O senhor Renzi, como é que ele perdeu?! O senhor Cameron, como é que ele perdeu?! Surpreende-me extraordinariamente como é que políticos experientes como Cameron, como Renzi convocam um referendo sobre a Europa. Os eleitores europeus, neste momento, são consumidores no mercado, gostam de produtos novos e o ser contra a Europa apresenta-se como um produto novo e diferente.
Rende votos.
E aqueles que apresentam esses produtos novos, o ser contra a Europa, fazem-no de forma vaga e escondendo as suas consequências — isto é, mostrar que é um bem sair da Europa, que é um bem sair da zona euro, sem explicar o que é que acontece no dia seguinte. Fogem sempre a explicar o que é que acontece no dia seguinte. E é esse o problema. Os discursos que o senhor Cameron, que o senhor Renzi fizeram contra a Europa ao longo do tempo! O senhor Renzi quantos discursos não fez contra a Europa? E os senhor Cameron? Os conservadores? Então e depois querem que os seus concidadãos votem a favor da Europa? E um político convocar com a antecedência de meses, quase um ano ou mais, um referendo? Diz: faço um referendo sobre este assunto e demito-me, se não ganhar. O que todos sabiam era que, se o referendo fosse "não", o senhor Renzi se iria embora.