É a maior comunidade chinesa no país e agora derruba muralhas
A comunidade chinesa da Varziela ergueu uma “muralha” em torno de si. Através do tai chi, um grupo de portugueses construiu uma ponte e, juntos, criaram a Ni Hao, uma forma de dizer olá.
Ainda se está a atravessar a rua e já se ouve a música que sai de dentro do pavilhão do Parque de Jogos de Vila do Conde. Só que em vez dos habituais cânticos das claques, paira no ar uma melodia mais calma, repetitiva, quase hipnotizante. Cá fora, em sincronia com os gongos e as flautas, há duas meninas chinesas que parecem estar a dançar. Movimentos precisos, cada um com uma intenção, mas que têm de parecer uma sequência. “Ser tão suave como uma onda do mar”, é assim que descrevem a arte do tai chi.
Lu Lu e Ting Ting, 12 e 14 anos, acabam de treinar e desligam o rádio. Trocam umas palavras em mandarim, riem-se e entram no pavilhão. “Esta já é a geração que está integrada perfeitamente, que fala português e anda na escola com portugueses”, conta Marcelo Lafontana, 50 anos, um dos fundadores da organização Ni Hao — Núcleo de Intercâmbio Holístico, Artístico, Oriental de Vila do Conde.
Há dois anos, Marcelo estava a passar pelo meio dos campos de futebol e básquete e encontrou um grupo de chineses a praticar tai chi chuan. Foi o “primeiro ocidental da zona” a juntar-se às práticas que acontecem todos os dias às 7h30 da manhã.
Marcelo nasceu em São Paulo, no Brasil, e veio para Portugal em 1990. Agora, o actor já se sente de Vila do Conde e quer que a maior comunidade chinesa do país, constituída por cerca de 1500 chineses (legalmente registados), sinta o mesmo. Conta que o grupo “achou muito engraçado os europeus se interessarem por aquela arte marcial”. Aos poucos, “depois de uma primeira interacção excelente”, foi incentivado a convidar mais portugueses para se juntarem às práticas.
Depois, o “leque de relações e encontros começou a alargar-se” para além das manhãs de tai chi, explica. Os portugueses, que chegaram “curiosos” e “fascinados”, começaram a reconhecer a cultura, visitaram cultos na Varziela, participaram em jantares, festas e cerimónias tradicionais e receberam nomes chineses. Marcelo é o Ma, “mais fácil de pronunciar”.
Olá Vila do Conde
O tai chi, espera a associação, é apenas o ponto de partida na interacção quotidiana entre as duas comunidades. A Ni Hao Vila do Conde, “uma maneira simpática de dizer Olá, Vila do Conde” em mandarim, foi criada em Fevereiro deste ano e surgiu espontaneamente depois de dois anos de convívio. O grupo decidiu “formalizar perante a legislação portuguesa a existência de pessoas interessadas na miscigenação” e, para “dignificar a prática do tai chi”, não em termos de modalidade desportiva, mas numa perspectiva mais cultural, esclarece o Marcelo.
Agora, com membros portugueses e chineses, continua a “fazer a ponte entre as duas culturas que até agora tinham uma relação estritamente comercial”.
Marcelo diz que, na perspectiva dos locais, os chineses que vêm morar para aquela zona ficam “enclausurados na sua língua e no comércio, para o bem e para o mal”, o que cria “alguns mitos” ao redor desta comunidade. Os encontros matinais foram a “brecha” que o grupo de portugueses conseguiu encontrar na “muralha” erguida pela comunidade chinesa em torno de si mesma.
A zona industrial da Varziela, no concelho de Vila do Conde, a 20 quilómetros da cidade do Porto, alberga cerca de 200 pontos de armazenagem e venda de produtos com origem na China, maioritariamente vestuário, calçado e marroquinaria. “Conseguimos finalmente testemunhar um outro lado cultural que não o da cultura da loja do euro e meio”, diz Marcelo, no intervalo entre músicas.
Sílvia Fagundes, vice-presidente da organização, diz que por agora a única actividade que a organização promove são os encontros que acontecem todas as manhãs, das 7h30 até cerca das 9h, para praticar tai chi. Estão “dependentes de apoios para fazer mais coisas”, diz, acrescentando que “futuramente” vão organizar uma oficina de caligrafia chinesa, uma actividade relacionada com o que ver com a medicina chinesa.
A Ni Hao conta com o apoio de vários parceiros institucionais, como a Câmara Municipal de Vila do Conde, a Liga dos Chineses em Portugal e a Associação dos Artistas Luso-Chineses. O próximo passo é encontrar um local para organizar este tipo de eventos, já que agora usam o espaço que pertence à companhia de teatro a que pertencem Sílvia e Marcelo.
Estes momentos serão organizados com a ajuda de Dai Song Sheng, o mestre chinês de 68 anos que começou aos dez a praticar artes marciais. Veio para Portugal há três anos, não fala português, mas isso não o impede de ensinar tai chi yang a quem também não fala mandarim.
“Sifu”, a palavra em mandarim para “mestre”, como lhe chamam, percorre a pé, todas as madrugadas, cerca de quatro quilómetros e meio desde a Varziela até ao centro de Vila do Conde. Demora uma hora e, quando chega, ainda tem energia para demonstrar os movimentos da arte que considera “terapêutica”. “É melhor que tomar remédios”, avisa.
Sílvia conta que Song Sheng era “uma pessoa muito respeitada na China”, e que agora começa a ser reconhecido também pelos locais de Vila do Conde. “As velhinhas quando têm uma dor vêm ter com ele”, já que “Sifu” também é terapeuta de medicina chinesa.
Atrás do comércio
O mestre veio da província de Wanzhou, na China para divulgar a modalidade de tai chi yang e para estar com as duas netas, Lulu e Ting Ting, as únicas alunas mais novas. Os outros elementos do grupo emigraram para serem comerciantes. Deixaram na China outras profissões que agora pertencem ao passado e às quais só às vezes, “quando estão mais confortáveis financeiramente”, regressam.
No pavilhão estão um ex-cozinheiro, uma ex-bailarina e um ex-músico. Este último nunca deixou de cantar. Wang é um dos mais velhos, tem 60 anos e trauteia a música que guia a composição de 42 movimentos, mais rápida do que as anteriores. Numa das manhãs da semana passada, gravou um vídeo do grupo e enviou para uma associação de tai chi na China. “Para verem o que fazemos aqui”, explica.
Wang foi um dos primeiros a vir para a Varziela. Chegou a Portugal com 27 anos e agora, mais de três décadas depois, reconhece que a comunidade chinesa naquela zona “cresceu muito”, o que torna “a associação Ni Hao ainda mais importante”.
Ao seu lado, também só a observar, está Lu, nome de família. Na China também já era comerciante. Aprendeu a falar português num curso à noite de dois meses, quando chegou cá há 11 anos, mas ainda tem “algumas dificuldades” que os portugueses da associação ajudam a colmatar.
A prática de tai chi acaba por volta das 9h. Depois, o grupo vai tomar o pequeno-almoço a um dos cafés em frente ao pavilhão. Nem todos vão, alguns acabam a prática e saem depressa, o dia de trabalho começa cedo e quase não tem pausas.
Quem os vê pensa que são um grupo de amigos. Ainda vestidos com as roupas tradicionais que o mestre encomendou da China, brancas ou de cores garridas, sentam-se para conversar. Mas quando chega a altura de fazer os pedidos, só os ocidentais é que pedem café. Há hábitos que não mudam.
Texto editado por Ana Fernandes