José M. Rodrigues: um fotógrafo à procura de abrir o seu “tesouro de negativos”

Com Errata, pequena exposição antológica que este sábado se inaugura na Galeria Barbado, José M. Rodrigues tenta fazer as pazes com Lisboa.

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A cabeça de um boi, onde o reflexo do fotógrafo aparece nos olhos do animal. José M. Rodrigues
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Uma fotografia da série “teatralizada” que dedicou ao tempo dos Bórgias. José M. Rodrigues
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Uma grelha mais experimental feita em Amesterdão, em 1982 José M. Rodrigues

“Não acreditava e dei comigo a dizer: ‘Não pode ser!’”

Pouco antes da conversa com o PÚBLICO, ainda a meio da montagem da exposição Errata, na Galeria Barbado, em Lisboa, José M. Rodrigues precisou de uma máquina de calcular, não tanto para o ajudar a fazer contas, mas para se ver confrontado com a certeza absoluta de que já passaram mesmo 49 anos desde que decidiu abandonar o cinema e dedicar-se à fotografia, quando estava em Paris, em 1968. Quase meio-século de actividade criativa na fotografia, um longo lastro e o aproximar de uma data redonda que parecem ter surgido de mansinho, sem avisar, não fosse agora o pragmatismo dos números que apareceram num ecrã. E também a oportunidade de organizar Errata, uma “pequena exposição antológica” (até 18 de Abril), que, para além da obrigatoriedade de olhar para o passado, tem o condão de fazer “a síntese”, de pedir “reflexão”, e de obrigar a “parar para pensar” sobre o que fazer a seguir.

Errata olha para alguns dos momentos mais marcantes da obra de um fotógrafo que só a espaços muito longos foi sendo mostrado em Lisboa, a cidade onde nasceu, em 1951, e à qual quer voltar, não apenas emocional, mas também fisicamente porque vive perto de Évora desde 1994 (já está à procura de atelier). É uma exposição que tenta marcar o início de uma nova etapa criativa, ao mesmo tempo que ensaia uma reconciliação com um espaço com o qual foi tendo uma relação atribulada. “Lisboa é a minha cidade, mas tenho estado sempre em conflito com ela. Veremos se agora arrumo essa luta. Quero deixar a torre de marfim do Alentejo, o isolamento. Quero fazer as pazes com Lisboa, tanto a nível profissional, como a nível emocional. Esta exposição chama-se Errata a pensar nesse sentido de ‘emenda’ na minha relação para com a cidade. Vamos ver se consigo pôr os pontos nos ii com Lisboa.”

Sem falar em nenhum trabalho em concreto que queira fazer em ou sobre Lisboa, José M. Rodrigues vai desfiando a memória e confessando a vontade de regressar a momentos tão simples como “ler o jornal e beber uma bica numa boa pastelaria”. “Os meus sonhos neste momento são extremamente simples, quero encontrar pessoas, voltar à cidade. Preciso de Lisboa agora”, diz no meio da azáfama da montagem de Errata, quando ainda não tinha chegado de Coimbra uma das suas fotografias mais conhecidas (Amsterdam, 1984), onde ele próprio surge em pequena escala, esticado e a saltar no vazio, perante um céu nublado. Na exposição da Barbado estão algumas das suas fotografias mais icónicas do longo período em que fotografou em exclusivo a preto e branco, mas é a série “teatralizada” que dedicou ao tempo dos Bórgias (um dos trabalhos mais recentes, a cores, com o qual participou nas celebrações do 5.º centenário do nascimento de São Francisco de Bórgia em Gandia, Valência) a assumir maior protagonismo. Foi um trabalho “desafiante” que o ocupou durante dois anos, no qual teve de transformar memória histórica e mitologia em fotografia. “A época de 1500 é muito interessante, com o início da globalização, os primeiros bancos, o capitalismo, o imperialismo que dividiu o mundo em dois. No início não tinha nenhuma referência para fotografar, mas li muito, estudei a pintura, a história, a família Bórgia. Gostei da ideia de haver quem tivesse conseguido fazer uma partilha do tipo ‘metade para mim, metade para ti’. Dividi a exposição numa parte de prata e outra de ouro, onde havia também referências à religião, à fé e à ideia de infinito, como se tudo fosse possível, um pouco como hoje, em que estamos muito perto de fazer turismo no espaço, de viajar para muito longe.”

Apesar de não ultrapassar as duas dezenas de trabalhos, por esta Errata dá para perceber a enorme diversidade de abordagens na obra de José M. Rodrigues, onde marcam presença as performances fotográficas dos anos 80, na Holanda, até a instalações mais recentes, como o trabalho que mostra uns lábios em forma de beijo, carregados de batôn vermelho e escondidos atrás de vidros baços cortados a meio, como se fossem portas de correr. A experimentação e dessacralização do objecto e do suporte fotográfico são outras características do trabalho fotográfico de um artista que, ao longo das décadas, se preocupou mais em produzir e criar do que em mostrar o resultado desse labor. “Não sou muito bom a fazer marketing pessoal, mas é certo que também me isolei demasiado. Tinha um ritmo que implicava trabalhar constantemente, mas agora tenho a noção que devo dosear essa prática. Preciso de ter mais momentos de reflexão e mais momentos qualidade [de vida].”

Na Holanda, país onde viveu entre 1969 e 1993 e onde estudou Belas Artes, fotografia e vídeo, o seu nome chegou ao topo, mas pode já ter caído no esquecimento (“De um dos melhores fotógrafos a trabalhar na Holanda, passei a ser um quase desconhecido”). À semelhança de Lisboa, há vontade de reatar esse laço holandês? José M. Rodrigues diz que sim, mas também reconhece dificuldades nesse desejo: ”Sou culpado desse desaparecimento. Ainda tenho uma galeria, mas já não falam de mim, tenho impressão que me puseram de parte… vou tentar reactivar essa ligação. Estive 20 anos na Holanda. Tenho pena de ter quebrado esse elo, aliás como aconteceu com Lisboa, com o Porto.”

Pôr a fotografia em causa

Como já se disse, trabalho para mostrar não falta. Ao longo da conversa com o PÚBLICO na Barbado, onde o crítico do Expresso Jorge Calado, um amigo de longa data do fotógrafo, tratava de trocar a disposição de imagens que já tinha sido mais ou menos definida, José M. Rodrigues falou em pelo menos três exposições que gostava de organizar assim que possível: uma com obras relacionadas com água; outra com fotografias sobre a barragem do Alqueva; e outra a partir de uma série relacionada com a viagem de Vasco da Gama à Índia. A quantidade de trabalho inédito é tal que o fotógrafo se considera, a rir, “um tesouro de negativos”. “Às vezes, ponho-me a pensar como foi possível do ponto de vista financeiro sobreviver assim durante tantos anos, mostrando pouco, vendendo pouco.”

Para além de querer mostrar mais o seu trabalho, à medida que a idade avança, há perguntas que se vão tornando inevitáveis, como aquela que diz respeito ao depósito e organização de um espólio vastíssimo como é o seu: “Tenho de organizar o meu arquivo para o deixar num sítio, estou a pensar nessas coisas… o arquivo precisa de ser aberto e guardado, bem guardado. Talvez no Arquivo Municipal de Lisboa, não decidi ainda, mas tenho perguntado às pessoas que me são próximas a quem o devo deixar, para garantir que não se vai perder.”

Perante uma instalação que inclui um livro queimado (matéria-prima recorrente), vidros, espelhos e autorretratos de escalas diferentes, José M. Rodrigues revela como pode ser de extremos a atitude de um criador perante o fotográfico. É que, do mesmo modo que consegue aplicar o rigor de um cirurgião (no enquadramento, nos processos de revelação, ampliação e impressão), também se deixa seduzir pela experimentação, como um chef de alta cozinha: “Gosto de rasgar, de colar, de pôr a fotografia em causa, como se estivesse a responder-lhe. Preciso de sair da clausura da superfície do papel e do enquadramento, que levo tão a sério. Não gosto de reenquadrar fotografias. Mas, ao mesmo tempo, gosto de sair desse rigor. E este tipo de experimentação ajuda-me a ir à essência, a fazer uma síntese.”

Nesse processo, confessa, sente-se “a desmantelar a fotografia”, mas é também através dele que consegue pôr em causa tudo aquilo que é e tudo aquilo que faz.

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