Sonia Braga, uma ideia de país

O sucesso internacional de Sonia Braga deu ao Brasil uma ideia de país que se cumpria. Como se compensasse sozinha toda uma vontade de potência. É esse corpo - de diva, mas orgulhoso das marcas do tempo - que agora, com o retorno de forças que ameaçam uma democracia jovem, resiste: Aquarius.

Foto
Tristan Fewings/Getty Images

Clara é claridade, transparência, luz, o nome perfeito para alguém que não está disposta a corromper-se. Sonia é Clara, tem a altivez e a dignidade de quem não está à venda, não se curva a modismos, não quer esconder a própria história. Há um ar de diva em cada movimento, uma força que impõe o respeito das coisas que se mostram como são. Ela está confortável com a sua idade, com o seu rosto, está confortável na sua pele. E dá sentido a uma ideia de Brasil sem fazer dela um estereótipo vazio que não resiste à passagem do tempo.

São muitas as definições possíveis de Sonia, entre elas uma das canções mais cinematográficas de Caetano Veloso, que reúne luz, cor e um tempo cuja velocidade se pode sentir fisicamente. "Teu cabelo preto, explícito objeto, castanhos lábios/ ou pra ser exato, lábios cor de açaí”. Trem das Cores, e não Tigresa, como muitos pensam, foi feita para Sonia, inspirada nela, a partir de uma viagem romântica de comboio entre o Rio de Janeiro e São Paulo que a actriz fez com Caetano. Também ali está uma ideia de Brasil, assim como Gabriela, bela sem ser idealizada, forte, sexy, colorida: uma mulher de cócoras que olha o mundo de frente.

E ela, natural do Sul embora identificada com o Nordeste pela interpretação das sucessivas personagens de Jorge Amado, foi para o mundo. Saiu, ficou 30 anos fora, naturalizou-se americana. Mas permaneceu no Brasil sempre como uma espécie de mito. Voltava para papéis fortes, como a Tieta, também de Jorge Amado, no filme de Carlos Diegues (1996), a última longa-metragem que protagonizou antes de Aquarius, há 20 anos.

As gerações com menos de 40 não viram Gabriela, não sentiram a força dessa personagem senão como um eco, mas tiveram em Sonia um símbolo sexual permanente que a distância ajudou a manter. De certa forma, ela não estar no país a fazer novelas e não se ter associado à Globo, como a imensa maioria das actrizes fora do teatro, mais os prémios e reconhecimento internacional, ajudaram a cristalizar a imagem distante e superior que acompanha a sua presença. Mas essa distância não é vertical: Sonia é simultaneamente o retrato de um Brasil comum, uma das sete filhas de uma costureira que, viúva, teve de sustentar a família sozinha.

Logo após Gabriela (1975), Dona Flor e Seus Dois Maridos (1976) consolidou-a definitivamente como uma actriz que permaneceria de forma única no imaginário do país. O filme de Bruno Barreto foi durante 34 anos o recordista absoluto de público do cinema brasileiro, tendo levado mais de 10 milhões de pessoas aos cinemas, número ultrapassado somente em 2010 por Tropa de Elite. Na altura, para o autor do romance, Jorge Amado, o filme representava “vitória do amor contra o preconceito, vitória da vida contra a morte”.

O sucesso internacional de Sonia deu ao Brasil uma ideia de país que se cumpre. Uma mulher, vinda de fora das capitais, estava lá no estrangeiro, reconhecida, tão forte e boa no que fazia. Era como se compensasse, sozinha, toda uma vontade de potência. Era um Brasil dando certo sem deixar de ser o que era.

Com Aquarius, Sonia volta em tempos negros como a personagem feminista que veio de fora sem nunca ter saído de dentro, como alguém que devolve ao Brasil uma imagem, que questiona, num momento triste de retorno vigoroso das formações mais antiquadas e machistas, a força política da resistência, do não, e de como o espaço físico constrói e representa a nossa identidade.

Quando o filme estreou em competição no Festival de Cannes, a equipa, na gala, retirou do bolso papéis com frases como “Um golpe de estado está a decorrer no Brasil”, “O mundo não pode aceitar este governo ilegítimo”, “54 milhões de votos a arder”. O então Ministro da Cultura criticou duramente o gesto, apoiado pelos que se opunham ao governo Dilma e apoiavam o impeachment. Para parte do Brasil, ela estava calada, longe, e havia o paradoxo de uma cobrança desse posicionamento e ao mesmo tempo uma imediata desqualificação desse posicionamento. Sonia declarou que a situação foi estranha porque já há algum tempo se expressava e apenas com o protesto na gala de Cannes e com as entrevistas do filme as opiniões tiveram efectivamente eco na imprensa. Para quem vê com preocupação e lamento o estado político das coisas no Brasil, Aquarius é o encontro poderoso entre uma figura que traz em si uma força única de actriz e uma consciência das ameaças que uma democracia tão jovem pode suportar.

O filme de Kleber Mendonça Filho é acima de tudo um estudo de personagem inscrito dentro de uma percepção não só da passagem do tempo mas sobretudo da presença dele. Constrói uma mulher que é nova e velha e que, fora de um corpo que se inscreve na juventude, fode, tem desejo, mas afirma-se vigorosamente independente de qualquer homem para ser quem é. Clara é uma sobrevivente, tem uma força intrínseca que não permite concessões.

Uma mulher cuja beleza prescinde mesmo da ideia de juventude, que se faz maior pelo tempo, pelo que atravessou - e o fim do filme revela justamente essa intenção de construir uma resposta de Clara a tudo que teve que enfrentar para se tornar quem é naquela altura. Da mesma forma que, durante o filme, esse corpo é o obstáculo à ideia de que tudo que está velho tem que ser derrubado, de que a história não vale nada, não importa. E as marcas estão inscritas nesse corpo, e são antes troféus do que motivo de vergonha ("Hoje/ Trago em meu corpo as marcas do meu tempo”, diz a canção que abre o filme). Clara não quer dissimular nada, não usa maquilhagem, não aceita próteses. A sua elegância vem da tranquilidade e firmeza com que encara a passagem do tempo.

Sonia não é Clara, mas Clara também é Sonia. Essa possibilidade, hoje, fala tanto da humanidade de uma personagem como de uma actriz que se volta a ligar a um país ao mesmo tempo que afirma não o reconhecer. Na complexidade desse paradoxo, existe um encontro. Talvez por isso Sonia tenha dito, com tanta força: “Aquarius devolveu meu nome, meu rosto, minha identidade como pessoa que atua no cinema do Brasil”.

Sugerir correcção
Comentar