O Oceanário de Lisboa é um sítio com muitos animais escanifobéticos
Uma das missões do oceanário, agora emblema da nova Fundação Oceano Azul, é a conservação das espécies e a sua divulgação. Para este último objectivo, há ateliers para os mais novos. O mais recente chama-se Escanifoquê? – À Procura dos Escanifobéticos do Oceanário e até tem um livro.
Enzo Esteves está surpreendido, muito surpreendido. Então ninguém o avisou de que nos douradinhos estava a comer carne de tubarão, além de pescada? “Hoje aprendi isso”, diz ainda de boca aberta. Para ele, os tubarões eram animais indomáveis e um autêntico terror para os mergulhadores. Mas nesta visita ao Oceanário de Lisboa isso está a ser desmistificado. “Eles não comem pessoas, muitas vezes são os homens que os caçam”, diz Jéssica Lopes, educadora marinha do oceanário.
É a primeira vez que Enzo Esteves está no oceanário. Acordou bem cedo e veio com mais 22 colegas da Escola Básica do 1.º ciclo de Artur Martinho Simões, na Amadora, até ao Parque das Nações. Ao contrário de Vasco, a mascote do oceanário, Enzo Esteves, de sete anos, não anda sonâmbulo pelo oceanário. Afinal, tem um objectivo: “Professora, quero ser mergulhador!” A professora Luísa Gonçalves depressa lhe responde: “Quando fores grande.” Mas Enzo Esteves não se contenta: “Mas ainda falta tanto!” Agora até percebeu que os tubarões não fazem mal e ia ser tudo mais fácil.
De colete reflector vestido, a professora Luísa Gonçalves decidiu trazer ao oceanário a sua turma de 2º ano, ou não houvesse “uma componente emocional” dela pelos animais marinhos. De certa forma, esta visita é uma ampliação do que se passa na sala de aulas. “Temos dois aquários na sala. Observamos os peixes, damos-lhes comida e vamos vendo como eles crescem. É um espectáculo nas aulas de Estudo do Meio”, conta Luísa Gonçalves. Por isso, esta vinda ao oceanário está a ser o dia D: “As mães disseram-me que eles nem dormiram de madrugada.” Em toda a turma da escola da Amadora, apenas dois ou três alunos já tinham visitado o oceanário, para os restantes é uma novidade.
Os olhos dos pequenos “mergulhadores” desta escola estão fixos no aquário. E não é um aquário qualquer. É o aquário central do oceanário, com uma capacidade de cerca de cinco milhões de litros de água e sete metros de profundidade. Dentro dele há vida e animais mais ou menos apressados: raias que levantam areia, uma manta gigante “que parece uma baleia” ou ainda os temíveis tubarões. “Estão a ver aquele tubarão amarelo com pintas?”, pergunta Jéssica Lopes. “É o tubarão-zebra”, esclarece. “Mas parece uma chita!”, ouve-se uma criança indignada.
A visita continua e os “mergulhadores” (como o oceanário chama aos pequenos visitantes) vão em fila indiana para outras águas do Atlântico Norte, casa de papagaios-do-mar e das tordas-mergulheiras. Ou vão ainda ao oceano Antárctico, onde habitam pinguins-de-magalhães e a andorinha-do-mar-inca, dona de um farto bigode.
Mas a paragem mais prolongada faz-se no espaço do Pacífico temperado, a nível terrestre, junto à costa. Lá, estão duas lontras-marinhas bem relaxadas. O grupo segue-as a boiar e alguns até lhes fazem adeus. Mas Jéssica Lopes tem segredos a desvendar: “Sabiam que a lontra é o animal com mais pêlo do mundo? E que come dez quilos de comida todos os dias? É como se comêssemos 100 hambúrgueres por dia.” É quando alguém diz: “Assim ficávamos todos gordinhos.” A educadora marinha do oceanário ainda tem uma questão sobre as lontras: “Sabem o que elas comem?” Surgem as mais variadas respostas: “Gelo? Peixe?” Até que Jéssica Lopes revela o mistério: “Marisco, caranguejos ou peixes.” As reacções surgem de imediato: “É chique!” E a visita segue.
Um livro-percurso ilustrado
Um dos caminhos desta visita e atelier foi a publicação de um livro. Escanifoquê? – À Procura dos Escanifobéticos do Oceanário foi lançado em Outubro de 2016, escrito por Ricardo Henriques e tem ilustrações de André Letria. O livro destina-se a alunos do ensino pré-escolar e do primeiro ciclo e tem um objectivo.
“Estamos a tentar fazer visitas temáticas ao oceanário para que os alunos tomem decisões [ambientais]. Isso já era patente nos níveis de ensino mais acima, mas não no pré-escolar e no primeiro ciclo”, diz-nos Teresa Pina, bióloga marinha e responsável pela educação no oceanário.
Todos os anos, o oceanário tem um programa educativo com mais de 30 actividades, como visitas guiadas ou ateliers. O programa destina-se a alunos e professores desde o pré-escolar ao secundário e os preços variam entre seis e dez euros. Em Outubro, iniciou-se o programa Plasticologia Marinha para os alunos do 1.º e 2.º ciclos e é gratuito, tal como o Vaivém Oceanário. Entre 1999 e 2016, o programa de educação recebeu mais de 965 mil participantes. Só nos últimos cinco anos, este programa teve cerca de 73.000 participantes anuais. Fora do programa educativo, há actividades em férias ou dormidas no oceanário, mas com preços mais altos.
Para concretizar a missão do atelier dos animais escanifobéticos, o oceanário tem mais de 500 espécies, entre animais e plantas, e convidaram André Letria e Ricardo Henriques para criarem algo “simples e pequenino” sobre o oceanário. O escritor e o ilustrador começaram em Maio do ano passado e acabaram por fazer um livro com cerca de 50 páginas. E quase do tamanho de uma folha A3.
“Sempre achei que podíamos ser ambiciosos”, começa por dizer André Letria sobre o tamanho do livro. As suas memórias mais remotas do oceanário são logo do seu primeiro ano, em 1998. A partir daí, perdeu conta à quantidade de vezes que fez a visita sozinho, em família ou, agora, com os ateliers das crianças. Só em 2016, o oceanário recebeu cerca de um milhão de visitantes, ano em que também alcançou os 20 milhões de visitas.
Em Julho de 2015, o anterior Governo atribuiu a concessão do oceanário à Sociedade Francisco Manuel dos Santos por 30 anos. E agora é da nova Fundação Oceano Azul, agora apresentada. Segundo o relatório de contas de 2015, o oceanário teve receitas de quase 13 milhões de euros e despesas de quase 11 milhões.
Antes, André Letria já tinha colaborado com o oceanário no projecto “Maré de Sorte”, que funcionava como o jogo da Glória, e já aí teve a experiência de desenhar e de se preocupar o rigor científico.
Mas, afinal, o que é o livro? “Serve de suporte à visita guiada que é feita por um educador marinho do oceanário e vai contando a história da visita e dos animais”, explica Teresa Pina. A acompanhar o Vasco, que é inspirado nos pequenos “mergulhadores” que chegam cedo ao oceanário, está Carlos Lineu: “Fui eu que, no século XVIII, comecei a chamar nomes em latim a todas as espécies de seres vivos”, lê-se no livro.
Depois, houve também a intenção de colocar cultura nas páginas do livro. “Que bigodes destas pessoas [e surgem os desenhos de Salvador Dalí, Charlot, Senhor Indiano e Frida Kahlo] te fazem lembrar os da andorinha-do-mar-inca?”, pergunta-se no livro, por exemplo. “O livro acaba por ser um instrumento para as visitas, mas queremos que seja também uma forma interessante sem o peso de ser uma coisa demasiado enciclopédica”, salienta a bióloga marinha. “Os miúdos gostam muito de aprender e este ambiente ajuda a que aprendam mais.”
Entretanto, os alunos da escola da Amadora vão em direcção ao Índico Tropical, também a nível terrestre. É lá que estão os corais florescentes e os “famosos” peixes-palhaço e os cirurgiões-paleta. “Ah, se calhar foi aqui que fizeram o filme do Nemo”, comenta um deles. E ainda alguém nota que por ali também anda um cirurgião-paleta: “Olha a Dory!”
Mas Jéssica Lopes tem algo a dizer sobre “esparguete” na água, como lhe chamam muitas das crianças. É uma anémona e tem espigões venenosos nos tentáculos. Apenas os peixes-palhaço conseguem fazer dela a sua casa, devido à protecção que têm na pele.
E voltamos às águas do Pacífico, mas desta vez a nível subaquático. Foi num dos aquários com um polvo, que Maria Leite e a Maria Dias, ambas de sete anos, se perderam de amores por este animal galanteador de oito tentáculos, que muda de cor e textura em segundos e liberta tinta preta para confundir os predadores. As duas Marias querem mesmo ser mergulhadoras, para estarem mais próximas dos animais. “Gostava de ser mergulhadora, porque assim podia dar comida aos animais e descobria mais coisas sobre eles. Por exemplo, a forma como têm filhos”, conta Maria Leite.
É esta a missão do oceanário e agora do livro. “Sempre achei que era importante passar para as crianças a mensagem de preservação e do cuidado com os oceanos”, sublinha André Letria, que revela que ele próprio descobriu “coisas assustadoras” sobre os oceanos enquanto ilustrava o livro. “Não quisemos transformar o livro numa coisa assustadora, porque não era essa a função, mas não quisemos branquear certas coisas, porque elas de facto estão a acontecer.”
Por isso, no livro há actividades sobre os plásticos nos oceanos, como as 4000 de cotonetes encontrados numa praia portuguesa durante uma hora, ou sobre a sobrepesca. Ou até mesmo avisos: “Por causa deste prato [sopa de barbatana de tubarão], milhões de tubarões são mortos anualmente. Evita esta sopa (só esta) que também pode surgir nas ementas com nomes Shark Fin Soup ou Yu-Chi-Tang.”
“No fim, as crianças chegam à conclusão de que podem mudar o mundo”, diz com um sorriso Teresa Pina. A par do atelier, as ilustrações de Escanifoquê? – À Procura dos Escanifobéticos do Oceanário vão tornar-se painéis espalhados pelo percurso da visita, nas paredes. “As pessoas levam um folheto da bilheteira, podem ir seguindo o percurso e respondendo a alguns desafios muito simples, que se baseiam no conteúdo do livro”, acrescenta André Letria.
E quando é que o livro vai estar à venda para todos? “Também já nos perguntámos isso. Já ouvimos pessoas perguntarem e o próximo passo será fazer isso”, responde o ilustrador.
Por enquanto, um exemplar irá para a sala de aulas de Enzo Esteves, da Maria Leite e da Maria Dias, tal como outras escolas que façam este atelier, para que o seu sonho de serem mergulhadores seja uma realidade.