“É preciso punir quem produz discursos de ódio, mesmo os políticos”

O comissário europeu dos Direitos Humanos, Nils Muiznieks, está “mesmo muito preocupado” com políticos que cavalgam o medo, a aversão, a antipatia aos estrangeiros.

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Nuno Ferreira Santos

O comissário do Conselho da Europa para os Direitos Humanos, Nils Muiznieks, esteve em Portugal entre 6 e 8 de Março. Desdobrou-se em reuniões em Lisboa e em Torres Vedras. Queria perceber o que mudara desde a sua primeira visita, já lá vão cinco anos, sobretudo no que à integração das comunidades ciganas diz respeito. “Os ciganos são o grupo mais discriminado na Europa, há muito poucos pontos de luz”, comentou. “A relevância das questões relativas às comunidades ciganas tem decaído na agenda europeia porque outros assuntos se sobrepuseram”, alertou. O comissário do Conselho da Europa para os Direitos Humanos referia-se ao afluxo migratório, à intolerância, ao “Brexit”, ao terrorismo.

Visitou Torres Vedras, onde está a funcionar bem o programa de mediação cultural impulsionado pelo Conselho da Europa e pela União Europeia. Veio à procura de boas práticas?
Eu queria ver o que pode acontecer quando há um município com boa vontade. Já vi muitas autoridades locais que nada querem fazer, que ignoram problemas, que não dialogam com ciganos. Queria ver um exemplo de boas práticas, mas tenho consciência de que há muitos exemplos de más práticas. Falei muito com a secretária de Estado da Cidadania e da Igualdade, Catarina Marcelino, e com os mediadores sobre que está a acontecer [em Santo Aleixo da Restauração] no concelho de Moura. Vi fotografias de um cavalo morto, de uma igreja queimada, de casas queimadas, de um graffito ameaçador. Isto é muito sério. Fiquei feliz por saber que o Alto-Comissariado para as Migrações [ACM] fez queixa ao Ministério Público. É bom saber que reconhece que isto é um problema sério. Disseram-me que não é uma questão de relações comunitárias, é um assunto de polícia. Um pequeno grupo está a criar problemas. Eu espero que esse grupo seja julgado e punido.

A queixa foi apresentada no início de Março, depois de a Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial ter considerado que havia “indícios da prática do crime de discriminação racial”.
Isto são crimes de ódio. Os crimes de ódio são mais sérios do que os crimes regulares. Afectam as relações comunitárias de uma forma mais abrangente – qualquer membro da comunidade cigana podia ter sido vítima. Também são mais sérios porque afectam os indivíduos de uma forma mais profunda. É mais traumático ser atacado ou ameaçado por causa da identidade do que ter a carteira roubada ou a propriedade destruída por hooligans. Quem faz isto quer mandar uma mensagem.

Os crimes de ódio têm estado a crescer em toda a Europa.
Sim e não afectam só as comunidades ciganas, também os imigrantes, os muçulmanos e outros grupos minoritários. É preocupante. Ouve-se as pessoas a dizer: “Oh, estou cansada do politicamente correcto.” Não é politicamente correcto, é civilidade, respeito pelas elementares normas de convívio entre os membros de uma sociedade. É perigoso achar que se pode dizer tudo. Vimos, por exemplo, o que aconteceu no Reino Unido, no referendo sobre o “Brexit”. O debate sobre imigração ficou completamente fora de controlo. Ouvimos estereótipos, exageros, previsões alarmistas. E assistimos a um enorme aumento de crimes de ódio. Não são só palavras. As palavras mandam sinais sobre o que é socialmente aceite e sobre o que não é. É muito importante manter os debates dentro dos limites da civilidade.

Como?
É um grande desafio. É preciso punir quem produz um discurso violento, que incita à violência. Há leis contra o discurso de ódio e essas leis devem ser aplicadas, mesmo que tal signifique punir políticos. Isso é um aspecto. O outro aspecto é a auto-regulação. Em muitos países, no Parlamento, há códigos de conduta, códigos de ética, que muitas vezes são ignorados. É preciso reactivá-los, lembrar que existem, fazer com que sejam respeitados. Os media também têm códigos de conduta, códigos de ética, orientações sobre como lidar com o discurso de ódio, que muitas vezes ignoram. E as polícias têm de ser mais activas no que diz respeito ao que se passa na Internet. Em alguns países, como a Finlândia, há ciberpolícia. Em muitos países, há cooperação entre organizações não governamentais, Ministério Público, operadoras, linhas de ajuda.

Pode ser muito ténue a linha entre discurso intolerante e discurso de ódio e, amiúde, surgem acusações de censura.
Nem todo o discurso intolerante é discurso de ódio. Se um discurso incita ou justifica discriminação ou violência, não deve ser protegido. Há muitos casos no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos que tornam bem claro o que constitui e o que não constitui discurso de ódio. Os moderadores na Internet precisam de ter formação sobre o que é ou não é aceitável. Também os procuradores, os jornalistas...

E a população em geral?
As pessoas têm de aprender a expressar-se. Está preocupado com a imigração? Tem medo da imigração? OK, então deve ser capaz de expressar essa preocupação, esse medo, sem insultar, sem ameaçar. O mesmo sobre ciganos. Está preocupado com os seus vizinhos ciganos? Expresse essa preocupação, mas de uma maneira que não estigmatize todos os ciganos, que não apele à exclusão, à discriminação.

O ódio é hoje uma das suas maiores preocupações?
A xenofobia, especialmente no contexto político. Nós vemos que rende votos nalguns países e isso é perigoso. Há poucos políticos prontos para se levantarem e para dizerem: “Isto não.” Há falta de políticos com coragem para confrontarem políticos que cavalgam o ódio. E estamos em época eleitoral na Europa. Tenho medo de que as pessoas olhem para o Reino Unido e para os Estados Unidos e queiram replicar a estratégia, com muito más consequências para a Europa e para as sociedades em questão. Estou mesmo muito preocupado.

Temos Marine Le Pen em França, Geert Wilders na Holanda.... Alguns dos políticos com discurso xenófobo já chegaram à liderança, como Viktor Orbán na Hungria, Robert Fico na Eslováquia...
É um problema em diversos países europeus. Temos uma mistura venenosa. Por um lado, continua a haver incerteza económica, as pessoas continuam preocupadas com os seus empregos, com o seu futuro. Por outro, há medo dos imigrantes, dos refugiados. E há medo do islão, medo do terrorismo. E muitos políticos aproveitam-se desta mistura de medos. Alguns, como é o meu caso, tentam esgrimir os argumentos dos direitos humanos. Não é fácil, mas é importante enfrentar o discurso desses políticos.

Qual é a sua estratégia?
Eu digo-lhes: “Não há prova do que dizes, não há prova de que a imigração está intimamente associada ao terrorismo, não há prova de que estas pessoas trazem uma onda de crime, não devias estar a dizer isto à tua sociedade.” Mas não são só as palavras que pronunciam, são também os actos que praticam. Em muitos países, os imigrantes em situação irregular são tratados como criminosos. Só cruzaram a fronteira sem autorização, mas são tratados como criminosos. Depois, quase toda a gente pensa que são criminosos. “Oh, estão na prisão, devem ser uma ameaça para mim.” Em muitos países, também faltam políticas de integração. Portugal é um bom exemplo. Acabei de receber um pacote de boas-vindas. Portugal está a fazer um bom trabalho.

Refere-se ao kit de acolhimento aos refugiados desenvolvido pelo ACM?
É impressionante. Contém vários materiais. Um dicionário conversor de palavras, um dicionário de expressões comuns, um USB com um vídeo de apresentação do país e outras informações, um exemplar da Constituição da República Portuguesa, um mapa de Portugal, uma T-shirt com ícones indicativos de necessidades quotidianas. OK, não sei falar português. Como é que digo que quero ir à casa de banho? [Aponta para o ícone respectivo.] Como é que digo que preciso de um médico? [Aponta para o ícone respectivo.] Muitos países não fazem estas coisas, depois dizem: os imigrantes ou os refugiados não querem integrar-se. Eles não são como nós. Se não os ajudarmos, claro que eles não se integram. Não encontram um caminho na sociedade.

Disse que tenta desmontar o discurso xenófobo recorrendo à força dos factos. Qual será a eficácia dos factos na chamada “era da pós-verdade”?
É uma questão de credibilidade. É muito importante para mim ser tão credível quanto possível. É também uma questão de ser bom comunicador. Na área dos direitos humanos, temos falado muito sobre a importância de desenvolver estratégias de comunicação mais eficazes, modos de chegar a pessoas que têm ficado de fora. Temos de ser capazes de passar a mensagem de que os direitos humanos não são só para ciganos, imigrantes, refugiados, gays, reclusos. Os direitos humanos são para todos. Os direitos humanos são também o direito que cada um tem de se sentir seguro na sua casa, na sua rua, no seu emprego, na sua vida. Não podemos esquecer os grupos vulneráveis, porque mais ninguém falará neles e eles têm dificuldade em falar sobre si próprios, em defender os seus direitos, mas também temos de falar na forma como as violações de direitos humanos afectam todos e temos de fazê-lo sem jargão, sem citar directivas europeias, processos do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, de uma forma que todos possam entender. Não podemos usar só palavras, racionalidade, temos de usar também imagens, emoções.

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