A ocidental praia venezuelana
Como toda a gente sabe, Núncio é o nome que se dá aos embaixadores da Santa Sé. Ora, aqui o papel de Núncio foi fechar os olhos para que, através de um banco que tem o nome do Espírito Santo, se pudesse levar dinheiro para o paraíso. Trata-se, portanto, de uma obra divina
Fiquei irritado, confesso, quando a meio da audição parlamentar sobre transferências para paraísos fiscais ouvi o ex-secretário de estado Paulo Núncio indignar-se e perguntar:
“Mas nós queremos ser a Venezuela, ou queremos ser um país ocidental?!”
Deu-se aquele exabrupto quando um deputado de esquerda (se não erro, Miguel Tiago, do PCP) lhe perguntava porque não foram controladas essas transferências de 10 mil milhões de euros. Na sua resposta, Paulo Núncio optou pela “reductio ad Venezuelam”: qualquer país que controle transferências para paraísos fiscais torna-se imediatamente como a Venezuela, que controla todo o tipo de transferências de capitais. Sendo a Venezuela um país riquíssimo onde se vive cada vez mais pobremente, num clima autoritário a soçobrar na ditadura, a conclusão de Núncio é clara: se queremos controlar as transferências para off-shores, é porque queremos ser miseráveis e oprimidos.
Ora, isto irritou-me. Em primeiro lugar porque, se a geografia não me falha, a Venezuela é um país ocidental. Até mais ocidental do que Portugal. Em segundo lugar, porque — se Paulo Núncio usava outra acepção, política e não geográfica, de “ocidental” — são precisamente os países ocidentais os que acham que se devem controlar as transferências para paraísos fiscais. É a UE que assim o determina nas suas diretivas contra a lavagem de dinheiro, que Núncio teve “dúvidas” em cumprir mas não teve dúvidas em incumprir. É a OCDE que o recomenda e verifica através de avaliações mútuas que, em Portugal, deixaram de se fazer quando Núncio era secretário de estado. Ele deveria saber que a política oficial dos países politicamente ocidentais é controlar as transferências, investigá-las, e publicar as estatísticas. Foi essa dupla ignorância geográfica e política que me irritou.
Só que, pelos vistos, era eu que estava enganado. Segundo notícias dos últimos dias, antes de ser secretário de estado Paulo Núncio foi advogado especialista em fiscalidade da empresa estatal Petróleo de Venezuela S.A. — a qual, já no tempo de Núncio no governo, terá feito através do BES a maioria das transferências incontroladas para o Panamá. Assim caem todas as peças geográficas e políticas no seu lugar. O que Paulo Núncio quis dizer na comissão parlamentar foi que desejava que Portugal fosse um país ocidental, tão ocidental, mas tão ocidental, como a Venezuela.
Eis senão quando me deparo com outro exemplo de reduccionismo, desta feita por Assunção Cristas, líder do partido de Paulo Núncio, segundo a qual falar das atividades profissionais passadas de Paulo Núncio significa, no limite, “acharmos que ninguém pode ter uma vida profissional antes de cargos governativos” e resultará num “problema muito grande porque só podem ser governantes professores, académicos, professores de liceu e gente que não tem uma vida privada”. Ora, já não me queixo de ter escapado a Cristas que nós só falamos do que fez Núncio antes de ser governante porque o cliente de Núncio-advogado escapou com milhares de milhões de euros sem controle quando ele já era Núncio-secretário de estado. Se as estatísticas tivessem sido publicadas, estaríamos todos mais protegidos, a começar por qualquer dos dois Núncios.
Não. O que me custa com Assunção Cristas é ela não ter encontrado outra forma de desviar o assunto. Algo assim: como toda a gente sabe, Núncio é o nome que se dá aos embaixadores da Santa Sé. Ora, aqui o papel de Núncio foi fechar os olhos para que, através de um banco que tem o nome do Espírito Santo, se pudesse levar dinheiro para o paraíso. Trata-se, portanto, de uma obra divina — a qual Núncio não quis que fosse pública por pura modéstia. Penso, cara Assunção Cristas, que esta seria uma resposta mais credível do que aquela que nos deu.