Camané: a alma canta e o fado acontece
Quatro noites consecutivas no São Luiz, com a lotação esgotada, mostraram Camané em boa e louvável harmonia com orquestra, na sua voz magnífica. Uma aposta ganha.
Depois da aventura de Ricardo Ribeiro com a Orquestra Metropolitana de Lisboa, em Novembro de 2016 (onde apresentou, com Rabih Abou-Khalil, a Toada de Portalegre de José Régio em forma de poema sinfónico), o São Luiz desafiou, para o mesmo palco e com a mesma orquestra, Camané. Para “um diálogo” com a Metropolitana. Camané, por seu turno, convidou o pianista e compositor Filipe Raposo a fazer os arranjos e a direcção musical. E o resultado, que esgotou a lotação da sala lisboeta durante quatro dias consecutivos (9, 10 e 11 de Março à noite e domingo 12 de Março à tarde), foi digno de forte aplauso. O fado de Camané, como lembra Sara Pereira (directora do Museu do Fado) no programa, “é um dom antigo, burilado e aprimorado no tempo”. E ele tem sabido, de ano para ano, de fado para fado, de disco para disco, manter acesa essa chama, com uma arte e uma entrega sublimes.
No último dia (aquele a que reporta este texto), isso foi bem patente em todo o espectáculo. Desde logo com uma nota prévia: os notáveis arranjos de Filipe Raposo atribuíram à orquestra um papel adequado, não intrusivo, nos fados ou canções apresentadas; e o início, com Este silêncio, acentuou muito bem o papel dos dois “campos”: a orquestra soou primeiro, sem voz; e depois ouviu-se Camané a capella, de palavra nítida e penetrante, com a sala subitamente às escuras para que só a voz nos iluminasse.
No repertório escolhido, o disco mais recente (Infinito Presente, 2015) foi preponderante, com cinco temas, mas todos os outros foram contemplados nalgum momento. De Uma Noite de Fados (1995), o primeiro, ouviu-se apenas um tema, e quase no final (Saudades trago comigo), mas Camané escolheu três temas (de cada) de Na Linha Da Vida (1998) e Esta Coisa da Alma (2000) e dois de cada um dos restantes: Pelo Dia Dentro (2001), Sempre de Mim (2008) e A Guerra das Rosas (2010). Isto do seu próprio repertório, já que incluiu ainda dois tangos, El dia que me quieres e La última curda (com Daniel Schvetz, autor dos dois arranjos, ao piano, e Pedro Santos no acordeão); Tuyo, do brasileiro Rodrigo Amarante (tema da série televisiva Narcos); a bela e melancólica Inútil paisagem (de Tom Jobim e Aloysio de Oliveira); o poderoso Abandono que Amália tornou imortal (David-Mourão Ferreira com música de Alain Oulman, conhecido também como o Fado de Peniche) e, por fim, Havemos de nos ver outra vez, comovente canção de Teresa Muge, que a sua irmã Amélia gravou.
Exceptuando o primeiro tango, onde Camané pareceu menos à-vontade do que no seguinte, a sua voz esteve sempre em grande forma, expressiva, calorosa, envolvente, com aquela expressão muito própria a que nos habituou e que é já a sua marca em Portugal e no mundo que vai visitando e merecidamente o aplaude. O trio de fado que aqui o acompanhou, bem ao seu nível (José Manuel Neto, na guitarra portuguesa; Carlos Manuel Proença, na viola; e Paulo Paz, no contrabaixo), teve com ele momentos de grande inspiração, quando tocou sem orquestra, ou de completude e harmonia, quando outros sons “invadiam” inteligentemente a sala. Mesmo a presença, quase no final, do coro Ricercare, em Sei de um rio, ampliou a expressão vocal do tema sem causar a mínima estranheza, com uma naturalidade surpreendente. Houve momentos de extraordinária beleza e expressividade (Chega-se a este ponto, Porque me olhas assim, Quando o fado acontece, Triste sorte, entre outros) mas, de um modo geral, o espectáculo valeu pelo seu todo, pela boa experiência com a orquestra (dirigida pelo maestro Cesário Costa) e pela confirmação de que, em Camané, a alma canta e o fado acontece. Um belo concerto.