Trump: a vacina da Europa

2017 é o ano das eleições de todos os riscos na Holanda, em França e na Alemanha e todos os olhares europeus se viram para a América. Trump é a face mais óbvia do perigo que nos ameaça a todos. A América é uma Europa fora dela, mais pujante, mas também mais injusta e guerreira, nem por isso menos próxima. Os europeus vêem-se no espelho da América e pressentem os seus pesadelos futuros.

Muitos escrevem que Trump será a vacina da Europa, numa inversão da  previsão de Kissinger de que Portugal poderia ser a vacina da Europa caso o Partido Comunista chegasse ao poder. Pensam que perante o risco Trump, a Europa, a que não é americana, se unirá e concretizará a utopia supranacional. O raciocínio é simples: perante a dupla ameaça do "Brexit" e de Trump, os dirigentes europeus unir-se-ão, agora já sem a perturbadora Grã-Bretanha.

Mas nada leva a crer que a ameaça Trump seja condição suficiente. Trump não pode ser a vacina da Europa, como Portugal não teria sido, se tivesse soçobrado no caos. Portugal desencadeou uma vaga democrática porque ultrapassou a crise e consolidou a sua democracia.

Se a política anti-imigração de Trump, e o seu ódio ao Islão, se consolidar como política dos Estados Unidos, por quatro ou oito anos, temo pelo futuro da União. O racismo antimuçulmano é a ideologia comum à direita nacionalista identitária americana e europeia. A visão de uma Europa branca enfrentando uma guerra de civilizações é o que aproxima a extrema-direita europeia de Putin e da sua cruzada anti-islâmica, da Tchechénia à Síria. É a mesma visão de Trump, o que explica, também, o apoio que Putin lhe deu.

É provável que o resultado das eleições em França, na Holanda e na Alemanha, não leve ao poder a extrema-direita. Na Holanda, mesmo que a extrema-direita seja a formação política mais votada, deverá ter dificuldade em formar governo; Marine Le Pen não deverá ganhar as presidenciais francesas e na Alemanha até é possível que o SPD volte ao poder.

Mas também é muito provável que nessas três eleições os partidos xenófobos tenham votações expressivas, mesmo na Alemanha, e que em França Marine Le Pen, apareça como a alternativa ao Presidente que for eleito aproveitando as fracturas dos socialistas e dos republicanos. O suspiro de alivio que perante tais resultados poderemos ouvir  será mais uma demonstração da ansiedade que atingiu muitos dirigentes europeus. Foi o mesmo suspiro que se ouviu quando a extrema-direita “só” teve 46% dos votos nas presidenciais austríacas

A esse suspiro pode chamar-se  tomar os desejos pela realidade – da expressão wishful thinking em língua inglesa. Os exemplos na história europeia são numerosos, mas actualmente recordamos os ligados à erupção do nacionalismo entre as duas guerras, como o tragicamente ridículo “paz no nosso tempo “, a declaração do primeiro-ministro britânico Chamberlain em 1938, após a assinatura do acordo com Hitler em Munique.

Se aprendemos alguma coisa da história europeia do século XX é que se deve levar muito a sério o nacionalismo. Aprendemos que a sua estratégia não é a conquista do poder de um só golpe, mas sim ir avançando e testando as resistências, por vezes recuando para melhor saltar, como Trump está a fazer com as medidas anti-imigrantes latinos e muçulmanos. Como fizeram os governos da Hungria e da Polónia.

Durante o seu discurso no Congresso, o tal em que foi “estadista“, em que não ameaçou a imprensa, nem insultou nenhum líder de um país aliado dos EUA, Trump anunciou a criação da VOICE - Victims Of Immigration Crime Engagement (apoio às vitimas de crimes cometidos por imigrantes) e teve o cuidado de convidar para ouvir o seu discurso viúvas de vitimas de imigrantes ilegais, estabelecendo uma conotação entre imigrantes e crime. Depois do fracasso da primeira ordem executiva anti-islâmica, sobre imigração, volta a tentar aplicá-la, mantendo o essencial: a discriminação com base na religião.

Na Holanda, o líder do Partido para a Liberdade (PVV) de Geert Wilders apela à expulsão de muçulmanos e afirma querer banir o Corão, propostas criminosas agora banais. Se a nova ordem executiva anti-muçulmana de Trump triunfar, as plataformas eleitorais anti-imigrantes poderão ganhar mais credibilidade, para começar já na Holanda.

Se a sociedade civil americana conseguir travar as medidas anti-imigração da administração, então é possível que a derrota de Trump inspire os europeus. Mas a Europa não pode ficar, mais uma vez, à espera dos marines.

Os políticos europeus podem, por exemplo, começar por recusar o discurso demagógico contra os muçulmanos e os imigrantes, defendendo, como o fazem hoje contra Trump milhões de americanos, que unir o que parece diferente  é a essência mesmo da democracia.

O que muitos esperam, ainda, dos seus  dirigentes, é coragem política para defender os valores em que assentou a União contra a ideologia do nacionalismo identitário, mas será também wishful thinking?

A resposta ao mal europeu não está no regresso às tribos, para usar a expressão de Eduardo Lourenço, nem numa coligação das tribos mais poderosas, a que alguns chamam, candidamente, núcleo duro. Está num projeto para a Europa toda, que concilie os cidadãos e as nações com as instituições supranacionais, numa nova utopia democrática europeia. 

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