Elite contra elite
O que se passa é que em cada caso as elites se sentem tão perdidas perante a globalização quanto as massas.
Uma das grandes fantochadas do populismo é a de propagandear que a política se define por uma luta das massas contra as elites na qual os populistas representam, naturalmente, as massas. O que temos no populismo atual é algo muito diferente: duas facções da mesma elite, ambas alegando falsamente serem capazes de controlar a globalização quando na verdade beneficiam dela.
Esta descrição aplica-se perfeitamente ao caso do "Brexit". De um lado, tínhamos David Cameron — com fortuna de família estacionada em paraísos fiscais — justificando, após anos de enfraquecer o combate à evasão fiscal na União Europeia, que o melhor para o Reino Unido era afinal de contas ficar numa União Europeia “reformada”, ou seja, perpetuamente fraca na luta contra a evasão fiscal dos fortes e permitindo ao próprio Cameron ser tão duro quanto quisesse na luta contra as ajudas sociais aos mais fracos e aos imigrantes. Do outro lado, quem tínhamos? Algum herói da classe operária? Não. Tínhamos Nigel Farage, um antigo especulador bolsista, financiado por um banqueiro de negócios com fortuna estacionada em paraísos fiscais, e que ainda há poucos meses teve o seu chefe de gabinete apanhado num caso de lavagem de dinheiro. Por muita retórica pró-e-anti-globalização que ambos veiculassem, tanto Cameron como Farage estavam de acordo numa coisa: no seu pânico de que alguém, algures, fosse à escala nacional, europeia ou global, pudesse vir a fazer algo contra uma financeirização do mundo na qual as elites do Reino Unido tanto têm participado e da qual tanto têm beneficiado.
Algo de muito parecido se verificou na campanha presidencial dos EUA. De um lado tínhamos Hillary Clinton, tida — apesar das concessões programáticas que teve de fazer a Bernie Sanders — como prócere das elites pró-globalização americanas. Do outro tínhamos Trump, insistindo na sua retórica de “pôr a América em primeiro lugar”, através, é claro, do seu fechamento ao México e do confronto em relação à China numa possível guerra cambial e comercial. Verdade? Se olharmos para os atos e não para as palavras, mentira. As roupas da marca de vestuário de Trump, tal como as da sua filha, são fabricadas na China, no Vietname e até no México. O dinheiro para os seus negócios vem provavelmente da Rússia. Calou-se na questão chinesa mal a China lhe aprovou a marca comercial “Trump” por dez anos. E logo após a sua tomada de posse, o contribuinte americano lá teve de pagar uma fortuna pela segurança pessoal dos seus dois filhos para estes poderem ir inaugurar os mais recentes empreendimentos da sua cadeia de hotéis aos emirados do Golfo Pérsico.
Haverá conto do vigário mais transparente no mundo de hoje? Não, não há nos populismos qualquer luta de massas-contra-elites. Há elites mais dissimuladas e elites que roubam às claras, umas que acreditam na sua retórica e outras acreditando apenas que a sua retórica é para usar à descarada até ao dia em que se ganha eleições. Após esse dia a retórica de antes será ora esquecida, ora lembrada, dependendo das necessidades políticas de momento.
O que se passa é que em cada caso as elites se sentem tão perdidas perante a globalização quanto as massas. Só que ao passo que entre os cidadãos comuns a questão é principalmente etária e de nível educacional, entre as elites o critério decisivo é principalmente de ramo de negócios. Algumas das nossas elites de negócios estão no ramo certo para beneficiar com a imigração indocumentada, outras no ramo de negócios certo para beneficiar com a deslocalização, outras no ramo certo para beneficiar com os paraísos fiscais — e nenhuma para beneficiar com uma globalização regulada. Essa, que seria a luta certa, continua oculta.