Um épico teatral a pensar nas ruas do Brasil

Em Tragédia e Comédia Latino-Americana, Felipe Hirsch cria um monumental cabaret macabro que olha para o Brasil de hoje a partir da montagem de textos de autores sul-americanos. Um díptico que, no Teatro São Luiz, nos fala de isolamento, individualidade e liberdade.

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Em vez de ficar à espera de ver a sua companhia envelhecer, a melhor forma que Felipe Hirsch encontrou para comemorar os 20 anos da Sutil foi desmantelá-la. Em 2013, após uma série de espectáculos que deixaram a sua marca no teatro brasileiro, Hirsch deixou-se abater pelo cansaço de sentir repetidamente que estava no fim da linha. “O que vem acontecendo no Brasil, aos poucos”, explica ao Ípsilon, “é que o teatro está sendo colocado de lado.” Quer isto dizer que qualquer oportunidade – e elas não escasseiam no Brasil – para trabalhar em televisão ou cinema galga sobre a mais entusiasmante proposta de ir para palco com qualquer grande texto da dramaturgia mundial. Por isso, Felipe matou e enterrou a companhia, e iniciou uma nova fase assente em duas ideias: trabalhar a partir da literatura latino-americana e “criar verdadeiros acontecimentos artísticos”.

Quer isto dizer que, desde 2013, o encenador brasileiro começou a pensar em produções de grande escala, com uma ambição épica, em que cada conjunto de criações a que se dedica não quer menos do que enfiar um bisturi na identidade brasileira, puxar-lhe as entranhas para fora e ficar a remexê-las com a curiosidade de quem procura ali pistas para o Brasil actual. “Queria que essas obras tomassem a cidade e, por coincidência ou não, isso se deu durante os grandes protestos no Brasil [de início, contra o aumento dos preços nos transportes públicos] e a gente começou a entender melhor o quanto o que a gente fazia dentro do teatro tinha significância na rua e vice-versa, o quanto a rua nos influenciava.”

Assim nasceu a tetralogia Puzzle, a convite da Feira do Livro de Frankfurt, onde Hirsch apresentou três das quatro partes da obra. As mais de sete horas de espectáculo seriam recebidas em clima de apoteose na Alemanha, talvez porque “não havia ali o Brasil cliché, do sol, do carnaval e das bundas”, reportava a Folha de São Paulo, “e, sim, um Brasil cru, marcado pela violência, pela desigualdade social, pelo consumo desenfreado, pela pobreza estética dos novos-ricos”. Para essas apresentações, Hirsch montou o grupo Ultralíricos, um colectivo volúvel, composto por actores, artistas plásticos, músicos, designers e gente que se reunia em sua volta para dar corpo a peças em que Hirsh extirpava frases de autores brasileiros contemporâneos e gerava “uma das visões mais críticas e lúcidas do Brasil actual”, como lhe chamou o Estadão. Na derradeira peça do Puzzle, ao incluir um excerto do argentino Roberto Bolaño, assinalava aquilo que chama “um mergulho bem vertical na literatura latino-americana” que vem desenhando desde 2013.

Reconstrução e dissolução

É desse alargamento ao resto do continente que nasce, em 2015, o díptico Comédia Latino-Americana e Tragédia Latino-Americana que Hirsch traz ao Teatro São Luiz, em Lisboa, entre 1 e 5 de Março, como parte do programa da Capital Ibero-Americana. Pode dizer-se que estas duas peças, cada uma a rondar as quatro horas, aprofundam a descoberta de várias questões que o encenador classifica como “anestésicas para a cabeça dos brasileiros”. “Escutámos desde jovens que não existe preconceito contra os negros, que o brasileiro não era capaz de reagir contra um governo. Mas desde 2013, independente de esquerda ou direita, das convicções de cada um, o brasileiro está podendo falar mais, colocar o dedo na ferida, entender mais o racismo dentro da sociedade, entender mais a exclusão das minorias e se entender mais como latino-americano.”

Esta nova geografia alargada permite a Hirsch expandir o leque de autores a que recorrer, mas sobretudo recentrar o seu pensamento numa questão mais vasta e que questiona o lugar do Brasil no conjunto da América Latina e a possibilidade de, com recurso a essas diversas vozes, investigar a possibilidade de identificação de uma identidade comum. O isolamento do país em relações aos seus vizinhos hispânicos explica-se facilmente pela sua excepcionalidade linguística, mas Felipe acredita que essa é apenas a resposta mais superficial. E contrapõe que “o que acontece é que a classe dominante brasileira, e por consequência a classe média, miram muito mais no way of life americano, estão conectadas no conforto da vida americana média de Miami. Já o resto da América Latina tem uma consciência mais de continente e não entende por que o Brasil não tem.”

Nestas palavras Felipe encontra lastro para levantar a possibilidade de identidade comum, não apenas a partir de referências histórias ao extermínio de povos autóctones pelos colonizadores e por semelhanças políticas e sociais nos processos de desenvolvimento, mas também para buscar nos textos desses escritores pistas para “quem somos agora e o que estamos fazendo em relação ao nosso continente”. Num cenário repleto de blocos de esferovite que se montam e desmontam como uma sociedade em permanente reconstrução e dissolução, Tragédia e Comédia não respeitam qualquer definição clássica dos géneros teatrais, antes agrupam diferentes temáticas que começam por anunciar-se através de um cabaret macabro, espécie de carrossel desengonçado, tropicalismo atonal, afirmação de uma intromissão musical que se espalha pelas duas obras.

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A partir de uma citação de Guillermo Cabrera Infante, Hirsch contrói uma canção de boas vindas aos fantasmas que estão em fundo – do Padre Anchieta que “fez coisas lindas ensinando os nossos índios a ser como nós” e do médico Henrique Roxo “que explicou ao congresso que os negros não são capazes de evoluir”, ao Presidente-ditador Getúlio Vargas, à família Sarney, aos torturadores, ex-dirigentes da Petrobrás ou Eduardo Cunha –, num género de grande fresco cáustico e grotesco apontado na direcção de políticos, militares ou civis, corruptos, bandidos e usurpadores, actores participantes numa pilhagem das várias riquezas do país.

Só que a tudo aquilo que há de concreto no díptico, Felipe Hirsch gosta de fazer suceder um crescente torpor abstracto, em que a especificidade histórica dá lugar a trechos mais difusos que funcionam também como trituração de qualquer intuito didáctico. Uma outra maneira de sair das grandes narrativas históricas e mostrá-las disseminadas, contrariadas ou simplesmente falhas de sintonia com os trajectos individuais. Até porque Hirsch confessa a sua preocupação perante um tempo em que cada um tem de ser engolido por um movimento de massas, como se a preguiça ou o interesse monotemático fossem coisa para pelotão de fuzilamento. Aqui, fala-se de liberdade. Da liberdade de não ser mercadoria, propriedade de outro ser humano, de pensar sem limites, mas também de ir beber um copo no botequim da esquina e voltar para casa à hora que apetecer.

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