Anna Karénina, a influenciar decisões desde 1877

A partir da leitura de Anna Karénina, Tiago Rodrigues escreveu Como Ela Morre como peça de reencontro com a companhia belga tg STAN. No D. Maria II, é tempo de reclamar o poder transformador e operativo das personagens nas vidas fora da ficção.

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Filipe Ferreira
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Em linha recta, entre Lisboa e Antuérpia há uma distância de 1746 quilómetros. Viajando de carro, a rota aumenta a quilometragem para 2076. Por estrada, é coisa para demorar 20 horas. No palco de Como Ela Morre, apesar da proximidade física, de Lisboa até Antuérpia vão 50 anos. Um homem, na cidade belga, em 2017, está a ler Anna Karénina enquanto o seu casamento vê as fundações severamente testadas. Uma mulher, na capital portuguesa, lê o romance de Tolstoi em 1967, agarrada à ideia peculiar de aprender francês com um autor russo, repetindo em voz alta um dos arranques mais populares da História da Literatura: “Todas as famílias felizes se parecem umas com as outras, cada família infeliz é infeliz à sua maneira.”

“São duas histórias a correr em paralelo, em espaços e tempos diferentes, mas unidas pela leitura simultânea do livro em palco”, resume Tiago Rodrigues. Como Ela Morre não é, portanto, uma adaptação do romance. O livro é uma personagem, “uma espécie de adereço vivo no espectáculo, citado, lido, às vezes encenado pelas próprias personagens”. É, à semelhança do que antes fizera com Bovary, uma peça construída a partir de pistas sugeridas por um clássico da literatura. Neste caso, o dramaturgo faz incidir a sua escrita sobre a importância que a leitura de um livro pode assumir “em decisões quotidianas menores ou maiores”, podendo tornar-se “uma espécie de manual para tomar uma decisão de vida em relação a um casal, ao amor e à solidão”. Ou seja, como uma mulher russa escrita entre 1873 e 1877 pode desempenhar um papel fundamental na vida de uma mulher portuguesa de 1967 (escrita em 2017) e de um homem flamengo de 2017. E como, no fim dessa cadeia, qualquer um deles pode produzir efeitos concretos em vidas fora da ficção.

Tiago Rodrigues estava imerso em Anna Karénina quando, passados alguns meses sobre a sua entrada em funções enquanto director do Teatro Nacional D. Maria II, percebeu estar a coincidir nessa leitura com Frank Vercruyssen e Jolente de Keersmaeker, membros da companhia tg STAN. Mais ou menos acidental, o certo é que Anna Karénina acabou, sem esforço, por ser atirada para a mesa de trabalho e ser eleita como inspiração primordial para a construção de um espectáculo que marca o reencontro entre Tiago e os belgas – depois do workshop em que se cruzaram em 1997, o português fez com os STAN a sua segunda peça profissional, Point Blank (1998), tendo participado noutras sete produções da companhia. Desta vez, a novidade – em cena no D. Maria II, Lisboa, entre 9 e 19 de Março – era que seria o português a assumir a autoria.

Anna Karénina, a mulher dividida entre dois Alexei (marido e amante), tornou-se o objecto de discussão sobre a peça que poderiam criar em conjunto. A duas semanas da estreia, encontramos Tiago, Frank, Jolente, Isabel Abreu e Pedro Gil (os dois actores portugueses) e o ponto Cristina Vidal sentados a uma mesa nas catacumbas do Nacional, nos últimos acertos de um processo que seguiu o método habitual dos STAN. Estão ainda a debater e a validar as últimas cenas que Tiago foi carpinteirando a partir das conversas colectivas, sem terem sequer pisado o palco. É ali, sentados à mesa, com o texto nas mãos (versões portuguesa e francesa), que vão “imaginando cenografia, figurinos, tomando opções de luzes, montando, preparando o espectáculo”. A grande diferença na aplicação deste processo é que, desta vez, não partem de um texto pré-existente e estão a levantá-lo desde a primeira frase – depois de trocarem ideias sobre cada proposta de cena, Tiago escreve e no dia seguinte validam ou corrigem até encontrarem o tom.

Duas ou três

Não querendo fazer desta distância de 50 anos entre Lisboa e Antuérpia uma janela com vista privilegiada para comparações entre dois tempos históricos e dois pontos na escala de costumes e avanços sociais, nem tão-pouco um contraste entre contextos português e belga, Tiago Rodrigues admite que espalharam pela peça indícios suficientes para que Lisboa em 1967 possa não ser um simples dado avulso. Não sendo determinante, é sugerido não apenas através de escolhas de figurinos e mobiliário, mas mais ainda nas alusões à passagem pela guerra no discurso do marido e na impossibilidade de a mulher se ausentar do país sem a autorização dele por escrito então requerida por lei, ou até nas referências às grandes cheias de Novembro e Dezembro desse ano em Lisboa e Odivelas.

A escolha de 1967, justifica Tiago, “tem que ver com este discurso sobre a mulher, sobre o desejo, sobre a sexualidade, sobre o fantasma da emancipação poder ser pré-68”. “Não é que em 68 as coisas tenham mudado radicalmente – não é que tenham sequer mudado radicalmente até hoje –, mas pareceu-nos que era pré qualquer coisa numa espécie de psicologia política. O facto de colocarmos estes casais nestas sociedades permite-nos falar de outros temas como vida, solidão, morte, felicidade e amor de formas diferentes.”

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Cada escolha feita por autor e actores visa sempre essa relação estabelecida entre as suas personagens e as do livro. Até porque não escondendo o fascínio por Anna Karénina, confessam a sua profunda ligação a outros protagonistas do romance – Levin, Kitty ou Karenin (numa primeira leitura Jolente seguiu sempre Anna, mas graças a Frank desenvolveu “uma enorme compaixão pelo marido) –, também vertidas para a intimidade destes dois casais. Em muitos momentos, aliás, Tolstoi infiltra-se em Como Ela Morre não sob a forma de citação directa ou de adaptação assumida, mas como motor de discussão que contamina as cenas e o ar que circula entre as personagens. “Há muito Tolstoi na peça que não parece Tolstoi”, assegura Rodrigues.

Falada em português, francês e flamengo, Como Ela Morre parece dever o seu título à confessa admiração do dramaturgo por aquela que considera “a melhor morte na História da Literatura”, capaz de, no dia em que a leu pela primeira vez, lhe ter estragado e salvado o dia em simultâneo. É nessa ideia de poder reclamado e operado por uma personagem no quotidiano do leitor que todo o espectáculo assenta. “Anna Karénina morre no mundo do romance; mas cada vez que lemos o livro ela ressuscita, e mesmo depois de o termos acabado adquire outra vida na nossa recordação”, escreveu George Steiner em Tolstoi ou Dostoievski.

Aqui, Anna Karénina passa a viver dentro do corpo de uma mulher portuguesa. “Dentro de mim há uma outra mulher”, diz a personagem que, por sua vez, habita em Isabel Abreu. “Ela vai a sítios por mim.” Até as vontades e as decisões de uma passaram a ser das duas ou até das três.

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