A última exposição em vida de Ren Hang

Em plena eclosão criativa e mediática, o fotógrafo chinês Ren Hang morreu prematuramente. Censurado pelas autoridades do seu país, foi no exterior que criou culto com imagens que celebravam uma sexualidade livre. Em Amesterdão, no museu FOAM, está patente a sua última exposição.

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Untitled, 2016 Ren Hang
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Exposição do museu FOAM Christian van der Kooy
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Untitled, 2013 Ren Hang
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Untitled, 2016 Ren Hang
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Untitled, 2014 Ren Hang
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Untitled, 2015 Ren Hang
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Retrato de Ren Hang (1987-2017)

Encontrava-se naquele momento do seu percurso em que era nítido que ia explodir artisticamente. Não que o fotógrafo chinês Ren Hang (1987- 2017) fosse um desconhecido. Mas dir-se-ia que 2017 tinha tudo para ser o ano da consagração. Os meios de comunicação falavam dele assiduamente pelas fotos onde celebrava uma sexualidade livre, desprovida de convenções, com jovens nus interagindo com animais ou objectos do quotidiano. No mundo da arte era celebrado mas também na moda e na cultura pop lhe prestavam atenção. A editora Taschen havia publicado há semanas um volume dedicado à sua obra, algo que não é muito comum para um jovem artista de 29 anos. E em Janeiro o influente museu FOAM de Amesterdão havia inaugurado a exposição Naked, que estará ali patente até 12 de Março.

E de repente, a 24 de Fevereiro, soube-se que havia morrido. A um mês de completar 30 anos, em Berlim, onde se encontrava em trabalho, suicidou-se atirando-se do vigésimo oitavo andar de um prédio. A notícia deixou o mundo da arte perplexa, como aconteceu com o compatriota Ai Weiwei, um dos artistas vivos mais influentes, que o apadrinhou. Sabia-se que sofria de depressão. Falava disso com candura, em curtas anotações, onde expunha obsessões e crises existenciais nas plataformas da Internet ou nas redes sociais. “Todos os anos tenho o mesmo desejo: morrer cedo. Espero que isso seja verdade este ano”, escreveu em Janeiro na rede social Weibo. A editora Taschen enviou, antes da sua morte, uma nota de imprensa que o descrevia assim: “É um rebelde atípico, magro, tímido por natureza e propenso a episódios de depressão.”

Sem antes nem depois

Tinha imensos seguidores. E a sua morte prematura poderá muito bem gerar um efeito de maior interesse pelo trabalho que deixou. Há dias uma massa de pessoas fazia uma fila para entrar no museu FOAM, em Amesterdão, apesar da chuva. Lá dentro, um espaço labiríntico, magnificamente concebido, acolhe várias exposições de fotografia, como a do japonês Hiroshi Sugimoto, mas a que desperta o maior interesse é a de Ren Hang, disposta num espaço que parece uma pequena biblioteca, com fotos de jovens nus, com gansos, serpentes, peixes ou flores, rodeadas por livros. Existe qualquer coisa de surrealista no que os nossos olhos vislumbram, mas também de experiência poética.

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Espaço da exposição no museu FOAM

Existe quem se demore a fixar algumas das fotos mais icónicas e até quem deixe tulipas debaixo delas, forma de homenagear o artista naquela que acaba por ser a última exposição que concebeu em vida, a par de outra exposição que está em Estocolmo no museu Fotografiska. Nas suas fotos, as raparigas têm invariavelmente a pele branca, o cabelo preto e os lábios pintados de vermelho. Poder-se-ia pensar em encenação, mas ele foi dizendo sempre que as suas sofisticadas composições correspondiam ao sabor do momento. Não havia um ideário estético definido. Mas a verdade é que a intersecção entre corpos nus, animais e os diversos espaços – o telhado de um edifício, um lago, uma floresta ou uma impessoal banheira – acabam por criar o mesmo tipo de ambiente, projectando ideias de juventude, liberdade, idílio ou romance.

Nas suas composições de corpos na floresta ou na montanha e nos seus estudos das formas masculinas e femininas, não existem leituras de cariz político ou sexual, mas há nas suas imagens desejo de rebelião. Parece não haver um antes e um depois. Apenas aquele momento. Os protagonistas, as paisagens melancólicas, a natureza e o corpo humano adoptando formas esculturais. “Não creio que a nudez seja desafiante – é algo comum a todas as pessoas”, dizia há dois anos. “Gosto de pessoas nuas e gosto de sexo”, acrescentava. “Utilizo apenas a nudez pelo realismo e sentido de presença.” 

Também escrevia poemas. E tal como nas fotos os temas andavam em torno da sexualidade, da identidade, do corpo, bem como do amor e da morte. Preferia fotografar amigos do que modelos profissionais, argumentando que isso lhe dava maior liberdade nas composições, que nem sempre eram as mais ortodoxas, com corpos por vezes em posições desconfortáveis.

Na China, os seus livros não eram publicados. Foi preso várias vezes. Viu exposições suas serem censuradas e blogues da sua autoria serem encerrados pelas autoridades chinesas. Não viam com bons olhos o “conteúdo sexual” das suas fotos. “As ideias políticas das minhas imagens não têm absolutamente nada que ver com a China”, defendia-se ele, recusando a ideia de que faria arte politizada, ao mesmo tempo que afirmava: “[É] a política chinesa que se empenha em criar obstáculos ao meu trabalho.”

Nasceu a 30 de Março de 1987, em Jilin, na província chinesa de Changchum e aprendeu a fotografar sozinho enquanto estudava Publicidade na faculdade. Desde os 17 anos que residia em Pequim, sabendo que ali o seu trabalho nunca seria validado. Era no exterior que as suas imagens eram enaltecidas. Ao longo de cinco anos concretizou 20 exposições individuais e participou em 70 colectivas em países como os EUA, França, Israel ou Portugal (na galeria Barbados de Lisboa), ao mesmo tempo que viu serem publicadas várias edições monográficas do seu trabalho. Mas esse reconhecimento que foi crescente nunca o tranquilizou.

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Untitled, 2016

Não era apenas o mundo interior que o conflituava. Os acontecimentos políticos globais também. “O êxito? Não sei o que significa”, dizia recentemente, acrescentando que “gostava que a vida corresse sem sobressaltos, suavemente”. Os seus desejos não se cumpriram. Depois de uma trajectória meteórica que o levou a obter o reconhecimento do mundo da arte, da indústria editorial, do universo da moda e da cultura pop – chegou a colaborar com o cantor Frank Ocean na fanzine Boys Don’t Cry –, deu-se a sua morte prematura, em plena eclosão criativa e mediática. Em Amesterdão está patente a sua última exposição em vida, mas tudo indica que ainda iremos ouvir falar muito dele nos próximos anos.

A sua obra visual impactante e a sua morte prematura podem muito bem servir para o nascimento de uma lenda contemporânea.

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