Visionários e malditos
Um estudo da biografia e da obra de Rimbaud que acaba por ser também um interessante trabalho autobiográfico de Henry Miller.
O escritor Henry Miller (1891-1980) ouviu pela primeira vez o nome do poeta francês Rimbaud em 1927 (tinha trinta e seis anos), quando vivia com a mulher (e com Thelma, uma outra mulher, que ele destestava) numa cave de um prédio sórdido em Brooklyn.
Thelma citava o poeta por tudo e por nada, e o facto de Miller a detestar quase lhe causou aversão ao nome de Rimbaud; o escritor americano passava por um período de “desespero e esterilidade”, e sentia-se extremamente céptico em relação ao génio de um poeta que escreveu toda a sua obra entre os dezassete e os dezoito anos de idade, pois tudo o que ouvia dizer a Thelma sobre ele, soava-lhe a “invenção da loucura” da mulher. Mas anos depois, e já a viver em Los Angeles, Henry Miller escreve febrilmente versos do poeta maldito nas paredes da casa que habitava (“da cozinha à casa de banho, passando pela sala de estar, e até no exterior da casa”) e, em 1945 começou a escrever O Tempo dos Assassinos-Um estudo sobre Rimbaud. Corriam tempos difíceis para o mundo e Miller ouvia nas palavras do poeta francês como que o apelo de um profeta do colapso da civilização. “Rimbaud descreveu, na linguagem simbólica da alma, tudo o que agora está a acontecer. Em minha opinião, não existe qualquer discrepância entre a visão que ele tinha do mundo e da vida eterna e a dos grandes inovadores religiosos.” Ou ainda: “Aquilo que mais impressiona nos maiores poetas do século XIX, e também do século XX, é o seu pendor profético.”
Ao longo de O Tempo dos Assassinos o autor americano estabelece muitas comparações, algumas assaz curiosas, entre a sua própria vida e a do poeta maldito. Por isso, e se lido em determinada perspectiva, este estudo acaba por dizer muito mais sobre o próprio Miller do que sobre Rimbaud. Ele confessa: “Os paralelismos [biográficos] são intermináveis. Abordo-os com algum pormenor porque, ao ler as biografias e as cartas de Rimbaud, comecei a ver as correspondências com tanta clareza que não pude resistir a anotá-las. Mas não penso que, nesta matéria, eu seja caso único; acredito que há muitos Rimbauds por esse mundo (…)”.
É assim que ficamos a saber que ficamos a saber que a “grande crise” que Miller passou lhe aconteceu por volta dos trinta e seis, trinta e sete anos (precisamente a idade com que Rimbaud morre), que o período em Brooklyn foi a Estação no Inferno de Miller, e que o período parisiense (entre 1932 e 1934) foi o das Iluminações. Depois há ainda uma série de referências comparativas entre as infâncias de ambos, a rebeldia escolar, a insolência e a arrogância, a precocidade intelectual, a falta de adaptabilidade social, a gaguez de falar em público mesmo socialmente para um grupo muito restrito, e interessantes anotações sobre a vida familiar, sobretudo as relações com o pai e com a mãe: “Tal como Madame Rimbaud, a minha mãe era do tipo nórdico, fria, crítica, orgulhosa, incapaz de perdoar, senhora de uma mentalidade puritana. O meu pai era do sul, de ascendência bávara, enquanto que o pai de Rimbaud era oriundo da Borgonha. Entre mãe e pai, choques e conflitos contínuos, com as habituais repercussões na prole.” A partir daqui tem o leitor bastante material para entender as biografias destes dois rebeldes da literatura: um que a deixou pela vida, outro que fez o percurso contrário, que foi o de levar a vida para a sua literatura nunca deixando de viver. Este ensaio de Henry Miller acrscenta um pouco às biografias existentes (Miller discorda da interpretação de muitos factos pelos biógrafos) porque nos dá uma visão singular de um poeta visionário feita por um escritor também ele visionário de um outro tempo.