Aqui as pessoas “não têm de provar que merecem uma casa”
Foi há quatro anos que a associação Crescer entregou as primeiras chaves do projecto É Uma Casa a pessoas que viviam na rua. O primeiro caso foi o de um homem que demorou um ano e meio até começar a dormir na cama.
A primeira pessoa que a associação Crescer tirou da rua e a quem deu um apartamento, no âmbito do projecto É Uma Casa — que celebra este mês quatro anos de existência —, foi, provavelmente, o maior desafio até hoje. Era alguém, conta a coordenadora Rita Pereira Marques, “que comia no lixo, dormia no sítio onde fazia as necessidades. Muitas vezes, a equipa de rua via-o literalmente a ser lavado pelos carros que limpam as ruas. Estava com uma grande descompensação psiquiátrica e foi preciso perto de dois anos para se conseguir estabelecer uma relação com ele”.
Quando, finalmente, este homem entrou numa casa — onde continua a viver até hoje —, usava-a como se continuasse na rua. “No início dormia à porta. Não ia à casa de banho, ia para a porta da casa fazer as necessidades. Para ele, fazia sentido: se era assim que fazia na rua, porque não podia continuar a fazer? Demorou cerca de um ano e meio para começar a dormir na cama, para usar a casa de banho. Foi um trabalho muito grande ensinar-lhe o que é o espaço dele, privado, em que pode fechar a porta e ninguém tem o direito de entrar.”
Durante os muitos anos que viveu na rua, era um homem “a quem não era reconhecida sequer a existência enquanto pessoa, era maltratado, deixou de ter identidade. Quando um carro de lavar a rua não diferencia se está a dar banho a uma pessoa ou a um caixote do lixo...”.
Foi um enorme teste ao princípio que está por trás do É Uma Casa, um modelo internacional, conhecido como Housing First, que nasceu nos Estados Unidos no início da década de 90 do século passado. “A ideia”, explica Américo Lage, presidente da Crescer, “é dar uma casa às pessoas que estão em situação de sem abrigo e a partir daí começar a trabalhar com elas”. A casa vem antes de qualquer outra coisa: as dependências, as questões de saúde, os problemas de legalização, etc.
“Mesmo em Lisboa ainda é um pouco inovador”, diz Américo. “Nas outras estruturas que existem é como se as pessoas tivessem de provar que merecem uma casa. Andam a vida toda de albergue em albergue e de estrutura em estrutura até provar que merecem viver numa casa.”
Uma pergunta que os membros da Crescer ouvem frequentemente é esta: as pessoas conseguem viver sozinhas numa casa? “Para nós, toda a gente consegue viver numa casa. Há pessoas que já não se lembram de como é, mas faz parte do projecto ajudar nessa reaprendizagem.” Actualmente, a média de tempo entre o primeiro contacto na rua e a passagem para a casa é de cinco a seis meses.
Uma pessoa como o homem cuja história contámos no início do texto preferia dormir perto da porta de entrada porque ainda estava “na situação de hipervigilância que se ganha na rua”. Às vezes, “a seguir passam para a sala, depois para o quarto, depois dormem vestidos em cima da cama, é um processo que pode demorar meses ou anos”. Noutros casos, é bastante mais simples, e as pessoas começam logo a usar a casa normalmente.
Outra ideia feita é a de que as pessoas não querem sair da rua. Não é verdade, afirma Américo. “Estamos a combater esse mito. Temos pegado nos casos crónicos, aqueles que nos dizem que a pessoa não quer sair da rua, e até hoje todos aceitaram ir para uma casa.”
Não é suposto ver seres humanos a viver assim
É muito importante o trabalho prévio feito pelas equipas de rua. É aí que se conquista a confiança da pessoa. “Havia na Baixa um senhor que rejeitava as equipas de rua”, recorda Rita. “Dizia que já tinha perdido a confiança e que não valia a pena falarmos com ele. Era um homem muito inteligente, com uma grande perspicácia. Sabia que, num sítio como a Baixa, os sem-abrigo são pessoas indesejadas porque afectam o turismo, e ele era muito sensível à ideia de que essa era a razão pela qual o queriam tirar dali.”
No primeiro contacto, disparou uma série de perguntas para testar a equipa da Crescer (26 pessoas actualmente, num projecto que nasceu em 2002). “Respondi a todas as perguntas que ele fez e senti que foi nesse momento que ganhei a sua confiança.” Não é fácil lidar com estas situações e, por isso, os membros da Crescer reúnem-se para falar das dificuldades que enfrentaram durante a semana. “É um trabalho muito duro, porque confrontamo-nos permanentemente com a impotência em coisas que parecem tão óbvias e que não se conseguem resolver, e porque não é suposto ver seres humanos a viver assim.”
Quando a equipa de rua lhes diz que pode arranjar-lhes uma casa, a primeira reacção é de incredulidade. “Pensam que somos mais uma associação que está a prometer mundos e fundos e que nada vai ser como estamos a dizer”, conta Américo. “Por vezes mostramos a chave da casa e perguntamos se não a quer ir visitar. Se não gostar, volta. Todos ficaram, menos um, que só aceitou a segunda casa que lhe mostrámos porque era mais perto da zona onde ele costumava estar.”
As casas são alugadas no mercado de arrendamento normal e o financiamento é garantido pela Câmara Municipal de Lisboa. “Procuramos nas imobiliárias, nos jornais, na Internet, contactamos o senhorio e apresentamos o projecto. A câmara já nos propôs dar casas do município, mas a recuperação destas pessoas num bairro social é completamente diferente.”
E os senhorios e vizinhos, como reagem quando sabem quem vai ser o novo inquilino? “Há uma parte dos senhorios que não aceita, mas no início tivemos até senhorios que baixaram a renda — na altura tínhamos um tecto de 250 euros e só conseguíamos alugar nas zonas históricas, noutras partes da cidade era muito difícil.”
Mas a ideia é precisamente envolver a comunidade; depois da instalação na casa, a equipa da Crescer ajuda a pessoa a inscrever-se no centro de saúde da zona, leva-a à junta de freguesia para perceber os apoios que pode ter. “Tentamos que se coloque como outro cidadão qualquer e que não recorra a estruturas como a nossa, que não use a nossa carrinha mas passe a usar os transportes públicos.” Enfim, que conquiste a sua autonomia, que não fique dependente da associação.
Regras para cumprir
Nos quatro anos que o É Uma Casa leva de vida foram já instaladas 15 pessoas (o objectivo é passar para as 30 casas e estão actualmente a trabalhar com novos casos para seis casas que estão livres). Houve até agora três casos que não cumpriram as regras e que tiveram de deixar as casas. Porém, sublinha Américo, “a taxa de sucesso é de 85%, muito semelhante à de outros países em que o modelo existe”.
São pessoas que têm uma média de 16 anos de rua. “Por vezes não aceitam a medicação, não querem ir ao médico ou parar os consumos de substâncias ilícitas”, explica Américo. “Este modelo não exige nada disso, e isso faz parte do êxito. Às vezes, mesmo sem medicação, a entrada na casa é suficiente para a sintomatologia psiquiátrica começar a desaparecer. No fundo, são defesas que as pessoas desenvolvem na rua para enfrentarem a agressividade.”
Mas há, apesar de tudo, regras. “Há uma, muito exigente, cujo não cumprimento leva à expulsão do programa: as pessoas têm de receber os membros da Crescer pelo menos seis vezes por mês. Algumas visitamos duas vezes por dia, para ajudar com a medicação, porque ainda têm pouca autonomia. As visitas servem também para pensar em conjunto com a pessoa como é que está a usar a casa, as questões de saúde, o contacto com a família, os consumos.”
Assumir uma nova identidade
A entrada na casa é acompanhada normalmente por uma diminuição dos consumos. “Houve até quem conseguisse começar a trabalhar e ainda consumisse. Nós trabalhámos isso com a pessoa, que teve de organizar uma estratégia para que os consumos não interferissem no seu trabalho.” Conseguir trabalho não é fácil — nem é um objectivo declarado —, mas a Crescer está neste momento a tentar criar projectos na área do emprego e também a apostar na possibilidade de trabalho ao dia ou até à hora, um modelo a que pessoas nesta situação se adaptam melhor. “São trabalhos precários, mas a ideia é mesmo essa. Temos de começar com patamares. Não podemos pedir que estas pessoas integrem uma empresa.”
Porque é que acreditam que este modelo resulta melhor do que outro tipo de respostas existentes? “Não pode haver respostas iguais para todas as pessoas”, defende Américo. “As que existem ajudam algumas, mas não outras. O que acontece em Portugal é que as pessoas se adaptam às estruturas, mas não tem havido uma preocupação de as estruturas se adaptarem às pessoas. Essa tem sido a nossa filosofia: se não temos sucesso com alguém, pomo-nos em causa. Se calhar não criámos a resposta necessária para essa pessoa. Tivemos casos em que durante mais de um ano nos disseram que não queriam nada connosco.”
Rita explica que continua a haver uma grande estigmatização. “Há por vezes uma crueldade por parte dos serviços sociais ou de saúde. Socialmente, ainda não estamos preparados. Somos tratados condignamente quando nos apresentamos bem, mas, nestes casos, mesmo que expliquemos que a pessoa já não é sem-abrigo, que já tem uma casa, continuam a olhá-la como um caso social e não de saúde e tendem a desresponsabilizar-se e a dizer que é um problema para a assistente social.”
A isto junta-se o facto de as próprias pessoas terem dificuldade em assumir uma nova identidade. “Às vezes demora anos a libertarem-se da identidade de sem-abrigo”, diz Américo. “Continuam sempre a falar na voz de sem-abrigo.” No entanto, mesmo que demorem a assimilar essa ideia, a vida mudou, e isso às vezes percebe-se em pequenas coisas. “Houve uma pessoa que nos comoveu a todos quando nos disse: 'Vocês não imaginam o que é eu poder chegar a algum lado e dizer a minha morada.'”