Neste Carnaval, os políticos levam a mal é não serem alvo de sátira
Em Torres Vedras, a “geringonça” vai desfilar pelas ruas da cidade. Parece uma bicicleta, mas com uma roda quadrada. Em cima dela, vão os bonecos de António Costa, Catarina Martins, Jerónimo de Sousa e um hiperactivo Marcelo Rebelo de Sousa com quatro mãos. A sátira é ali uma questão de honra.
Em Torres Vedras é assim. Os artistas não têm mãos a medir com os bonecos dos políticos da autarquia. É um problema quando escolhem caricaturar só alguns. É que todos gostam de se ver no exagero, com os narizes grandes, as rugas acentuadas. Querem rir-se de si próprios. E amuam se não estiverem lá representados. “Vereadores da oposição e tudo”, diz o artista Fernando Sarzedas num dos estaleiros onde estão a ser construídos os carros alegóricos que vão participar nos corsos.
Cheira a cola e a tinta, há esferovite espalhada no chão – alguns bonecos já são feitos através de uma impressora 3D, mas outros continuam a ser moldados à antiga. São dois os estaleiros onde estão a ser erguidas as estruturas e criados os bonecos que vão, com todo o consentimento e alegria, ridicularizar os principais rostos da política local, nacional e internacional.
Torres Vedras é uma das cidades do país onde a sátira política é uma questão de honra para os governantes. E uma galhofa para os governados (todos se lembram do ano em que foi apresentada uma queixa por haver imagens pornográficas nos computadores Magalhães, o que não deu em nada e só serviu para aumentar a animação). “Vale tudo”, resume César Costa, da Promotorres, empresa municipal que tem a seu cargo a produção do Carnaval; a organização é da Câmara Municipal.
Num dos estaleiros, os artistas estão empoleirados em cima de escadotes, de carros, outros agachados a pintar e a retocar os bonecos da bloquista Catarina Martins, do comunista Jerónimo de Sousa, da centrista Assunção Cristas. Da rádio, sai a voz de Fafá de Belém: “Vermelho, vermelhaço, vermelhusco, vermelhante, vermelhão./ O velho comunista se aliançou/ Ao rubro do rubor do meu amor.”
A música, a ecoar por acaso no armazém, não podia ser mais apropriada: está a ser montado o carro da “geringonça”. Se antes era a direita a reinar no Carnaval, agora a esquerda está em peso: a bicicleta invulgar, com uma roda quadrada, é comandada pelo primeiro-ministro António Costa. Nela vão também, claro, Catarina Martins e Jerónimo de Sousa. Atrás, um hiperactivo Marcelo Rebelo de Sousa com quatro mãos.
E, mesmo que esteja ainda em construção, facilmente se imagina a “gerigonça” em andamento pelas ruas de Torres Vedras já neste domingo. Desengonçada, original, divertida, mas muito bem oleada e montada. Os artistas atarefados, e Fafá na rádio na sua batucada: “Meu coração é vermelho/ De vermelho vive o coração/ Tudo é garantido após a rosa vermelhar./ Tudo é garantido após o sol vermelhecer/ Vermelhou no curral/ A ideologia do folclore avermelhou.”
O actual primeiro-ministro já esteve em Torres Vedras, quando era autarca de Lisboa, e também gostou de se ver naquelas caricaturas, garante quem se lembra. Até recebeu, como presidente da Câmara, um boneco seu. O socialista Mário Soares também chegou a dar de caras com a sua caricatura naquelas ruas. Com o sentido de humor que lhe era conhecido, é fácil acreditar que apreciou, como recordam os torrienses.
No centro da cidade, está já montado, desde 4 de Fevereiro, o monumento ao Carnaval. Como este ano o tema é “brinquedos e brincadeiras”, estão lá vários “pinóquios” de esquerda e de direita: Santana Lopes, Durão Barroso, Passos Coelho, José Sócrates, António Guterres. Cavaco Silva está a dormir. São todos marionetas nas mãos de Angela Merkel, é ela quem está a comandar o robot da austeridade. Mas, como a Europa já conheceu melhores dias, um dos carros é um dominó – tem um arame farpado com as estrelas União Europeia e uma chanceler alemã sem mão para pôr no sítio as peças desalinhadas.
A política seria “mais triste”
Organizar este Carnaval é um processo com várias fases, mas, na realidade, a cabeça de quem vive esta altura do ano com entusiasmo nunca chega a desligar. Mal acaba um, começa logo a decisão do tema do próximo. Qualquer pessoa pode fazer sugestões, mas na votação participam a Câmara Municipal, a Promotorres e as associações ligadas ao Carnaval. O artista Bruno Melo passa o Verão a pensar no que pode fazer: “É na altura em que vejo mais telejornais.”
Carlos Guardado da Silva, que dá aulas em Ciências da Documentação e Informação na Universidade de Lisboa e esteve 20 anos à frente do Arquivo Municipal de Torres Vedras, não tem dúvidas de que, sem a sátira, a política seria muito mais monótona: “Naturalmente mais triste, sem sabor.”
Concentrado a pintar o boneco de Jerónimo de Sousa, com uma foice e um martelo, Bruno Melo concorda: “Dá um gozo especial, porque podemos brincar, somos nós que ditamos as regras e brincamos.” Neste ano, vai ainda haver o carro “Caçando Zékemons”, no qual políticos como Costa, Passos Coelho, o ministro das Finanças Mário Centeno, entre outros, andam de telemóvel em punho a correr atrás de “Zé Povinhos” em forma de Pokémon. E o carro “Que susto”, no qual Centeno sai de uma caixa para apanhar o porquinho mealheiro (magrinho) de um Zé Povinho criança.
Este é também um Carnaval – que acontece entre 24 de Fevereiro e 1 de Março – que tem de ir sendo actualizado. Por exemplo: Donald Trump foi acrescentado ao monumento ao Carnaval, depois de ser eleito Presidente dos Estados Unidos. Está lá com uma pala do cabelo cor de laranja do tamanho dos exageros caricaturais, um míssil e um Speedy Gonzales ao lado.
Numa publicação da autarquia sobre o tema, pode ler-se que a primeira referência ao Carnaval em Torres Vedras é de 1574. Trata-se de uma queixa de um morador “contra uns moços folgando com um galo dia de entrudo trazemdo rodelas, espadas paus como costumam o tal dia’”. Depois deste relato, há outros, mas muitos falam num Carnaval sem grande animação. É em 1923 que se encontra a primeira referência a uma festa organizada.
Carlos Guardado da Silva recorda que a sátira política existe no Carnaval de Torres Vedras desde o início do século XX: “No que diz respeito ao Carnaval de Torres Vedras, talvez os três elementos que melhor o possam melhor definir são o facto de ser uma festa de cariz popular participada, isto é, do povo para o povo, onde não se distinguem actores e espectadores, sendo permitido a estes ocuparem, em qualquer momento, lugar no desfile.” Outros traços são a crítica social e a sátira política, local, nacional e internacional: “a crítica ao regime, assim como à actuação de alguns políticos, criticando as suas decisões e a demora na resolução dos problemas da comunidade e, por vezes, expondo a ridículo os seus vícios.”
A sátira social e política não é, porém, exclusiva de Torres Vedras. Loulé é outro exemplo. E, embora nem todos tenham os mesmos traços identitários, há outros Carnavais que se destacam em Portugal, como os de Loures, Sines, Ovar, Estarreja, Mealhada, Elvas e os trasmontanos (Lazarim, Podence e Vinhais).
Hoje com 45 anos, Carlos Guardado da Silva ainda se lembra do Carnaval quando morava no Cadaval, não muito longe de Torres Vedras: “Tenho as primeiras memórias do Carnaval aldeão, desde a idade de 7 ou 8 anos, em que se fazia barulho pelas ruas da aldeia, tocando panelas e latas velhas de modo a incomodar aqueles que queriam dormir, com alvos bem escolhidos, como se fosse um período de balanço do ano transacto e de ‘acerto de contas’.” O professor continua certo disto: são “a crítica social e política e a música que dão alegria ao Carnaval”.