O braço de ferro de uma escola de samba com o agronegócio brasileiro
Quando anunciou o seu tema para o Carnaval de 2017, enaltecendo os povos indígenas da Amazónia, a escola de samba Imperatriz Leopoldinense não imaginou que criaria um conflito com o sector agropecuário.
Na madrugada de domingo para segunda, a escola de samba Imperatriz Leopoldinense vai entrar na Avenida Marquês de Sapucaí – o Sambódromo do Rio de Janeiro – para mostrar o seu samba-enredo “Xingu: o clamor que vem da floresta”.
A narrativa faz uma homenagem às tribos desta região da Amazónia, na bacia do rio Xingu, abordando rituais indígenas e a luta dos povos locais pela preservação da floresta. Num desfile que trará líderes de diferentes etnias no topo de um dos grandes carros alegóricos, uma das alas vai mostrar os agricultores que espalham químicos, enquanto noutra há pessoas com motosserras prontas a cortar árvores.
Nem todo o desfile vai acontecer conforme o planeado. O samba-enredo não passou despercebido aos representantes do agronegócio brasileiro, que nas últimas semanas fizeram pressão para que a escola de samba retirasse do seu desfile as críticas àquele poderoso sector.
No início de Janeiro, várias empresas agropecuárias publicaram um comunicado conjunto onde questionam a forma como a escola “aborda negativamente alguns dos aspectos da produção, como a ocupação das terras e a utilização de defensivos [químicos]”. “Milhões de pessoas vão ver isto e podem pensar duas vezes em relação a comprar os nosso produtos”, queixa-se Marcelo Eduardo Luders, presidente da Ibrafe, uma associação brasileira de cultivo de feijão, citado pela Reuters.
Até mesmo no Senado brasileiro houve manifestações contra o posicionamento da escola de samba. “Não podemos enviar para o mundo uma mensagem errada de que o agronegócio é o vilão. Trata-se do alicerce da economia, respeitado em todo mundo pela eficiência, preservação ambiental e tecnologia”, afirmou o senador Cidinho Santos, do Partido da República.
A agricultura brasileira é das maiores exportadoras do mundo de produtos como a soja, carne, café e açúcar. O sector, que gerou mais de 375 mil milhões de euros em 2016, de acordo com a Reuters, é um dos poucos que mantém a sua pujança num período de crise económica nacional.
“Sou a favor da homenagem aos povos indígenas do Xingu, mas que essa se faça sem ofensa a um sector que tanto contribui para o país”, exigiu Cidinho Santos, senador pelo estado de Mato Grosso. Também Ronaldo Caiado, senador de Goiás, propôs que o Congresso analisasse “a difamação de um sector que deveria ser louvado”.
No início desta semana, a Imperatriz Leopoldinense anunciou que iria trocar o nome de uma das alas, passando de “Os Fazendeiros e seus Agrotóxicos” para “Uso Indevido de Agrotóxicos”, anunciou o jornal brasileiro Estadão. O anúncio coincidiu com um encontro de representantes da Sociedade Rural Brasileira e da Sociedade Nacional de Agricultura com o presidente da escola de samba, Luiz Pacheco Drumond.
“Só queremos defender a nossa terra”
“Quando escolhemos o enredo, não queríamos só fazer um espectáculo, mas dar voz aos indígenas e mostrar a luta dos povos da floresta”, defendeu esta sexta-feira Cahê Rodrigues, o carnavalesco (director artístico) da Imperatriz Leopoldinense, depois de uma visita de representações indígenas, citado pelo portal UOL.
O artista, que visitou a Amazónia para criar as máscaras inspiradas na cultura indígena, lamenta a controvérsia: “Infelizmente, algumas pessoas se confundiram com nossa verdade e trouxeram uma polémica desnecessária. Espero que vejam que nunca tivemos a intenção de agredir ninguém e, sim, de enaltecer os povos do Xingu”.
O cacique Raoni, líder indígena que ganhou notoriedade internacional pela luta pela demarcação de terras na Amazónia, também falou à imprensa no final do encontro na Cidade do Samba. “Estou aqui também por um motivo só: para falar que é preciso dar respeito a cada um dos indígenas. Não aceitamos desmatamento e poluição dos rios nas áreas indígenas”, afirmou.
No ano passado, numa reunião do Conselho de Direitos Humanos da ONU, a relatora para os Direitos dos Povos Indígenas, Victoria Tauli-Corpuz, recomendou ao Governo brasileiro que aumentasse os seus esforços para demarcar e proteger os territórios indígenas, numa altura em que começam a surgir propostas legislativas para suavizar as regras de protecção florestal e demarcação dessas terras. Em Setembro, representantes dessas comunidades denunciaram ao Parlamento Europeu e à Comissão Europeia violações de direitos humanos da parte do próprio Estado brasileiro, relata a Agência Senado.
O Brasil tem uma população indígena de cerca de 900 mil pessoas, menos de 1% do total do país, mas que enfrentam níveis de pobreza acima da média.
Bel Juruna, representante de 11 etnias do Alto Xingu, criticou ainda a construção de centrais hidroelétricas como a gigantesca Belo Monte: “Estão matando os nossos rios, desviando seus cursos. Nosso povo está morrendo. E nós só queremos defender a nossa terra”. A construção da barragem foi suspensa no ano passado, respondendo às preocupações dos povos indígenas, mas os ambientalistas temem que o projecto ainda possa ser retomado. Os defensores da construção de grandes infraestruturas, como barragens, afirmam que o Brasil precisa de investimento, energias limpas e criação de emprego, destaca a Reuters.