Menina e Moça, uma livraria-bar no coração da boémia lisboeta
Novo espaço no Cais do Sodré quer levar os autores lusófonos aos locais e aos turistas, num ambiente que evoca essa boémia onde a literatura tantas vezes floresce.
Entrar na Menina e Moça, a nova livraria-bar do Cais do Sodré, é ser convidado a rever velhos amigos e a travar conhecimento com novos – uns feitos de papel, outros de carne e osso –, enquanto tomamos um café ou beberricamos um copo de vinho. O espaço agora inaugurado na Rua Nova do Carvalho, em Lisboa, tem como regra única a língua portuguesa e quer aproximá-la de lisboetas e estrangeiros.
“Esta é uma homenagem aos autores portugueses, à gastronomia portuguesa e à cidade de Lisboa”, diz a proprietária, Cristina Ovídio, que tem vindo a criar uma relação próxima com a literatura portuguesa ao longo da sua carreira na edição, primeiro na Oficina do Livro, depois na Planeta e, mais recentemente, na Clube de Autor, onde trabalha com autores como Mário Zambujal, Miguel Sousa Tavares ou Clara Ferreira Alves. “Queremos que este seja um espaço de animação cultural, de leitura e de tertúlias e que se proporcione um encontro entre as diferentes gerações”, explica.
À primeira vista, pode parecer inusitado ver surgir uma livraria numa conhecida rua da noite lisboeta, mas foi o frequente casamento entre a literatura e a boémia que Cristina Ovídio quis explorar. "Seria difícil encontrar outro lugar que estivesse associado à boémia, aos turistas, à divulgação de autores portugueses aos turistas, mas também à lusofonia e ao vinho”, esclarece, acrescentando que “é bom que exista aqui um espaço que suscite alguma provocação”. Também as estantes da Menina e Moça são um tributo ao Cais do Sodré, estando envoltas de cima a baixo numa rede de pesca que tem a função dupla de “proteger os livros em caso de enchente”. A cor é uma constante na livraria projectada pelos arquitectos Henrique Vaz Pato e Pedro Quintas, mas o olhar de quem a visita prende-se especialmente no tecto, onde navegam barcos e voam balões da autoria do ilustrador João Fazenda.
A vasta selecção de livros oferecida pela Menina e Moça - cujo nome evoca a célebre novela pastoril de Bernardim Ribeiro - abrange autores portugueses clássicos e contemporâneos, mas a livraria pretende dar prioridade à literatura traduzida para poder chegar a um público mais amplo. Para já, encontram-se nesta secção escritores como Fernando Pessoa, José Saramago, Cesário Verde, António Lobo Antunes e José Rodrigues Miguéis. “Muitos destes livros estão só em inglês, mas queremos apostar também no francês, porque há muitos franceses que vivem em Lisboa e que são amantes não só de Pessoa como de Lobo Antunes”, explica Cristina Ovídio.
É essa ligação que a editora pretende fazer entre a língua portuguesa e o resto do mundo, exemplificando com um episódio em que um visitante norueguês comprou poesia de Maria Teresa Horta ou um outro em que um grupo de irlandeses levou o romance Caim, de Saramago, e O Livro de Cesário Verde. “Falando-lhes deles [dos autores] é engraçado, porque levam-nos para a mesa, começam a folhear e acabam por escolher”.
A livraria também homenageia a cidade onde nasceu através de livros como a colectânea Lisboa Desaparecida, de Marina Tavares Dias, que recupera a série de textos jornalísticos publicados sobre a história da capital, e da venda de postais que mostram a Lisboa antiga. Além de contar com obras de autores como Raul Brandão, Carlos Drummond de Andrade, Mário Sá-Carneiro, Ruy Belo, Herberto Helder, José Luís Peixoto, Daniel Faria ou Miguel-Manso, a livraria tem ainda uma pequena secção dedicada aos clássicos da literatura internacional, como Charles Dickens, George Orwell, Gabriel García Márquez, Umberto Eco ou Aldous Huxley. Cristina Ovídio quis que a Menina e Moça fosse, acima de tudo, um aconchego onde a única inquietação é “o livro como algo que nos desassossega” e, para isso, decorou as estantes com a presença tutelar de alguns mestres da literatura portuguesa, retratados em imagens do arquivo fotográfico de João Francisco Vilhena.
A lusofonia é o prato principal servido na Menina e Moça e nem o menu da casa escapa à literatura. As “vírgulas” são os petiscos, como as tábuas de queijos e os cestos de pão, os “contos” são as sopas, como o caldo verde e a canja de galinha, os “protagonistas” são os pratos principais, como folhado de galinha e saladas, e os “pontos finais” são as sobremesas, como o pastel de nata ou o leite-creme. No que diz respeito à carta das bebidas, Cristina Ovídio destaca a “poesia”, isto é, os diversos cocktails dedicados aos diferentes países da Comunidade de Países de Língua Portuguesa: “Temos bebidas tipicamente portuguesas como o medronho e a ginja e outras provenientes de países como Cabo Verde, São Tomé, Angola e Moçambique”, acrescenta a proprietária.
Para Cristina Ovídio, que cresceu rodeada de livros (é filha do físico e divulgador científico António Manuel Baptista 1924-2015 e tem na livraria expostos alguns dos livros que pertenciam à biblioteca do pai), o mundo alucinante e tecnológico em que vivemos hoje é uma realidade preocupante que condiciona os nossos hábitos de leitura. “Tudo o que exige silêncio e estarmos com nós próprios acaba por nos assustar”, reitera a editora, elaborando que “ninguém sente os sons da cidade nem olha a arquitectura ou sequer nos olhos do outro”. É essa a missão da Menina e Moça – recuperar esse deslumbramento quase infantil pelas palavras e pelos mundos de sonho e aventura a que nos podem transportar.