O "desconforto" dos funcionários britânicos nas vésperas do "Brexit"
Assim que accionar o Artigo 50, o Reino Unido torna-se um “país-membro que está de saída”. A erosão da sua influência já se nota nas instituições. Há britânicos a pedirem a nacionalidade belga.
A cláusula de saída da União Europeia (UE) ainda não foi invocada pelo Governo britânico, mas em Bruxelas as instituições, os funcionários britânicos, as representações diplomáticas, as empresas e os lobbyistas já estão a interiorizar que o divórcio vai ser uma realidade. Preparam-se para as negociações e para o salto no desconhecido — num ambiente que fontes diplomáticas classificam de “desconforto e indefinição”, à espera que Londres notifique a intenção de se separar para o processo negocial poder finalmente começar.
Até sair do bloco comunitário, o Reino Unido é membro de pleno direito, mantém o seu comissário europeu e os eurodeputados britânicos desempenham plenamente o mandato. Mas, assim que accionar o Artigo 50 do Tratado de Lisboa, o Reino Unido vai deparar-se pouco a pouco com a condição de “país-membro que está de saída” — com as consequências que isso poderá acarretar em termos de perda de influência progressiva no seio da UE.
Nos últimos meses, à medida que a ideia da separação vem pouco a pouco a ganhar forma, sucedem-se os sinais de mal-estar, numa espécie de prenúncio de “fim de festa”.
Que se passa na Reper?
No dia 1 de Julho caberia ao Reino Unido assumir a presidência rotativa do conselho da UE. A presidência semestral permite a um país marcar a agenda política das diferentes formações do conselho. Mas na sequência do referendo que ditou o saída da UE, Londres abdicou de assumir esse cargo, cabendo agora a tarefa ao país que se segue na lista, a Estónia. Se o “sim” à UE tivesse vencido no referendo, a representação diplomática do Reino Unido junto da UE (Reper) estaria provavelmente a preparar a presidência semestral do conselho. Assim, está a braços com o “Brexit”.
No rescaldo do referendo, os sinais das dificuldades de Londres em lidar com a situação adensaram-se: começaram com a demissão do então primeiro-ministro, David Cameron, continuaram com as tensões nos principais partidos britânicos entre defensores de um corte radical com a UE (hard “Brexit”) e partidários de uma saída suave. O culminar das dificuldades ocorreu com a demissão do representante permanente do Reino Unido junto da União Europeia, Ivan Rogers, que saiu no início do ano com estrondo, obrigando Theresa May a encontrar um substituto para este lugar-chave na engrenagem institucional em Bruxelas, num momento crucial de preparação do divórcio.
No início do ano, o site Politico dava conta da decisão do Governo britânico de cancelar 24 postos relacionados com a UE, incluindo nove na Reper, em Bruxelas. Dizia ainda que os lugares disponíveis não eram preenchidos e que o moral estava em baixo. Fontes britânicas em Bruxelas confirmaram ao PÚBLICO que houve “mudanças estruturais” previstas com vista à presidência rotativa do conselho, entretanto desnecessárias, porque Londres já não vai assumir essa responsabilidade.
Cimeiras europeias a 27
Enquanto for membro da UE, o Reino Unido tem os mesmos direitos e deveres que os outros países. No Conselho Europeu, “os britânicos continuam a participar e a primeira-ministra contribui como os líderes dos outros Estados-membros”, garante uma fonte comunitária que acompanha as cimeiras europeias.
Mas se a 28 há uma aparência de normalidade, já as cimeiras informais a 27, sem Theresa May, estão a tornar-se um hábito. Os restantes líderes têm recorrido a estes encontros que decorrem geralmente a seguir aos conselhos europeus, após a saída da líder britânica, para acertar estratégias sobre o futuro da UE. Um modelo que tenderá a repetir-se com o “Brexit” à vista.
Ao mesmo tempo, a perspectiva de o Reino Unido abandonar o bloco comunitário está a levar “a movimentações políticas por parte dos outros Estados-membros, que procuraram ocupar o espaço que os britânicos vão deixar”, explica uma fonte diplomática em Bruxelas.
Um exemplo dessas “movimentações” é o frenesim em torno da Agência Europeia de Medicamentos, actualmente com sede em Londres. Com a saída do Reino Unido da UE, deverá abandonar a capital londrina. Lisboa, Dublin e outras cidades já estão na corrida para acolher a instituição responsável pela supervisão dos medicamentos.
Comissão Europeia
Quando se demitiu 48 horas após o referendo, o comissário britânico Jonathan Hill — favorável à permanência — ocupava em Bruxelas a pasta mais emblemática para o Reino Unido e importante para a City de Londres: os Serviços Financeiros e União dos Mercados de Capitais.
Na reacção à demissão de Hill, o presidente da Comissão lamentou e lembrou que no início do mandato considerou que o comissário do Reino Unido deveria ficar responsável pelos Serviços Financeiros, como testemunho da sua confiança na continuidade do país na UE.
Após a renúncia, o pelouro passou para o vice-presidente Valdis Dombrovskis. Hill foi substituído por Julian King, mas este assumiu a pasta da Segurança, em estreita cooperação com o comissário responsável pelos Assuntos Internos e Migração. O pelouro decisivo dos mercados financeiros fugia assim definitivamente ao Reino Unido, num dos primeiros sinais de que os tempos mudaram.
Parlamento Europeu
No Parlamento Europeu, em Estrasburgo, os efeitos do “Brexit” começaram horas após o anúncio dos resultados do referendo com o deputado conservador Ian Duncan a abandonar o cargo de relator para o sistema de comércio de emissões da Europa. Duncan acabaria por reconsiderar.
Mas no Parlamento Europeu alguns sentiram desconforto com o novo cenário e nos dias seguintes surgiu uma discussão polémica com vários parlamentares, sobretudo franceses, a porem em causa o estatuto dos deputados britânicos.
Mais recentemente, na tradicional rotação de cargos a meio do mandato, os eurodeputados britânicos conseguiram manter as presidências de três comissões parlamentares. Mas há sinais de que os podem estar a perder influência.
Dois membros do Partido Trabalhista deixaram de ocupar importantes posições de coordenação na bancada socialista na área das relações externas e do comércio internacional. O think tank VoteWatch, que monitoriza a actividade do PE, diz que se trata de um primeiro impacto do “Brexit”, já que a previsível saída dos deputados britânicos enfraquece a sua posição dentro dos respectivos grupos políticos europeus.
Há deputados que defendem que os britânicos não devem ser relatores parlamentares com influência na legislação da UE. “Os britânicos vão ser nossos concorrentes na cena internacional, por isso não devem ser responsáveis por legislação europeia em questões como o mercado interno, comércio ou indústria”, diz ao PÚBLICO o eurodeputado socialista belga Marc Tabarella.
Assim, a tendência nos grupos políticos poderá ser de atribuir cada vez menos responsabilidades legislativas aos eurodeputados do Reino Unido. O facto de no final de 2016 dois destacados parlamentares britânicos, o conservador Timothy Kirkhope e o trabalhista Richard Howitt, terem renunciado aos mandatos para exercerem outras actividades acentua a sensação de “virar de página”.
O futuro dos funcionários
Outra dor de cabeça para Londres é a situação de incerteza dos funcionários britânicos que trabalham nas instituições. Só na Comissão Europeia há 1025. No Conselho são cerca de 75 e no Parlamento Europeu quase três centenas (sem incluir deputados nem assistentes). Apesar de alguns terem dupla nacionalidade, a maioria dos britânicos deverá preparar-se para a saída do seu país das instituições comunitárias. A situação em que se vão encontrar dentro de dois anos é uma enorme incógnita. Ficam alguns? Saem todos? Tudo vai depender das negociações entre Londres e os parceiros da UE, mas a preocupação é evidente.
Muitos britânicos — funcionários da UE mas não só — estão a pedir a nacionalidade belga para poderem manter o seu estatuto. Numa das comunas de Bruxelas — Ixelles, onde estão recenseados 1500 britânicos —, foram apresentados 300 pedidos de nacionalidade belga, dos quais 41 estão já garantidos.
Notícia alterada, com correcção relativa ao artigo 50 do Tratado de Lisboa.